O voto dos "estranhos" e a cidadania múltipla

Cidadãos, políticos e direito internacional isolam Bettel. Mas há muito bons argumentos a seu favor.

Em referendo, o Luxemburgo votou de forma esmagadora contra o direito de os “seus” estrangeiros poderem votar nas eleições nacionais. Não surpreende. Se o “sim” tivesse ganho, o Luxemburgo tornar-se-ia o único país da União Europeia – senão do mundo – a consagrar esse direito. Até os EUA, cuja génese é uma colecção de estrangeiros, nasceram em 1776 com esse direito mas passado um século já não existia em nenhum estado. No fundo, todos olhamos para os estrangeiros como seres estranhos e potenciais inimigos. Desconfiamos. Eles vivem e trabalham nos nossos países, pagam impostos, dão e recebem. Mas o limite é o voto. Escolher o Presidente ou o primeiro-ministro é exclusivo dos nacionais.

Esta é uma pergunta que faz particularmente sentido no Luxemburgo. Os estrangeiros são metade da população e as diferentes comunidades vivem em harmonia – só os portugueses são 16% da população. O primeiro-ministro Xavier Bettel defendeu o "sim" como um gesto que reforçaria a democracia e a integração. Usou argumentos factuais (“não há mais nenhum país europeu onde só 40% da população eleja os seus representantes”) e argumentos terroristas (“nenhum país do mundo, para além do Dubai, tem este nível de défice democrático”). Perdeu. Mais de 78% dos eleitores votaram “não”, incluindo Jean-Claude Juncker.

Xavier Bettel está isolado no Luxemburgo e no direito internacional, que define as pessoas sempre em função da sua ligação ao Estado de que são nacionais. Mas no mundo académico há muito que se defende uma profunda revisão das leis eleitorais de modo a dar direito de voto aos estrangeiros. Paulo Manuel Abreu da Silva Costa, que há muito estuda este tema, sistematizou já em 2000 os conceitos que foram surgindo como resultado das novas dimensões de participação política do mundo moderno: a “cidadania de geometria variável” (Stefano Rodota, Juan Rodríguez-Drincourt Alvarez), a “cidadania multidimensional”, a “multicidadania” e “nova cidadania” (Francis Delpérée), a “cidadania múltipla” (Francisco Lucas Pires) e a “comunidade inclusiva” (Gomes Canotilho). As democracias maduras ainda não encontraram uma resposta ao que um eleitor do Luxemburgo resumiu agora, à porta de uma mesa de voto, em duas palavras: “Apartheid político”.

A exclusão de pessoas que participam activamente no desenvolvimento económico, cultural e social das sociedades onde vivem deve ser combatida, defende o académico citado: porque os imigrantes pagam impostos e contribuem para o desenvolvimento dos países de acolhimento; porque votar promove a integração social e porque se todos votarem os partidos são obrigados a pensar em todos e não apenas em alguns. Outro argumento pode ser acrescentado: seria uma forma de combater as elevadíssimas taxas de abstenção.

E não é impossível. Em Portugal, os cidadãos brasileiros residentes há mais de cinco anos podem obter o “estatuto especial de igualdade” e com isso não só votam nas autárquicas e legislativas como exercem algumas funções públicas, mesmo de carácter governativo.

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