O voluntarismo social-democrata e a voracidade do neoliberalismo

É sabido que as democracias liberais do Ocidente, e em particular da Europa, se alicerçaram historicamente na prevalência de uma relação tênsil e equilibrada entre os dois conceitos que constituem o seu fundamento último: a igualdade e a liberdade.

Como em todos os sistemas baseados num equilíbrio instável, nem sempre esta relação se revelou harmoniosa; nalguns casos extremos, a preferência absoluta pela materialização da igualdade de condições questionou e ofendeu o princípio da liberdade; noutras circunstâncias, inversamente, o culto hegemónico do valor da liberdade conduziu à desvalorização de qualquer propósito igualitário. Sempre que assim sucedeu, assistiu-se à exteriorização de crises e de conflitos sociais e culturais, normalmente sanados através de decisões políticas devidamente consensualizadas. Para que tal acontecesse, exigia-se o pré-requisito de uma articulação pacífica entre as ordens política, económica e social. Foi isso precisamente que caracterizou a história europeia no imediato pós-guerra, período marcado pela instauração de um Estado-providência associado à edificação dos mecanismos próprios de um Estado de Direito democrático e à opção por um modelo económico estribado na ideia do mercado. Estamos hoje em condições de afirmar que essa construção histórica constituiu a mais bem-sucedida e sofisticada materialização do equilíbrio entre as duas pulsões conformadoras do arquétipo das sociedades democráticas e abertas.

Esse período histórico, que hoje recordamos com inevitável nostalgia, terminou com a abrupta erupção da crise económica dos anos setenta que possibilitou o advento vitorioso de uma corrente política inspirada na doutrina política e económica que se convencionou designar por neoliberalismo. Antes do seu triunfo eleitoral, esta linha de orientação ideológica tinha feito o seu caminho no mundo universitário, em diversos círculos intelectuais e, sobretudo, em vários think tanks expressamente criados para promoverem a sua divulgação pública. Figuras como Ludwig von Mises, Friedrich von Hayek, Robert Nozick, Milton Friedman ou James Buchanan foram progressivamente associando ao prestígio académico e intelectual uma notoriedade pública e mediática propiciadora de uma grande capacidade de sedução política. Não é, por isso, de estranhar que as suas ideias se tenham difundido de tal forma que influenciaram decisivamente as opções eleitorais verificadas na transição para os anos oitenta, com as consequentes repercussões na esfera governativa de vários países – os seus principais ícones políticos emergiram no mundo anglo-saxónico com a ascensão ao poder quase simultânea de Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos da América. A primeira-ministra britânica, especialmente influenciada pelo liberalismo radical de Hayek, mal chegada ao poder, proclamou a dissolução do conceito de sociedade, opondo-lhe a supremacia absoluta da noção de interesse individual. Renegando uma parte significativa da própria tradição conservadora, identificada com a ideia de compaixão social, reclamava dessa maneira a primazia de uma visão atomista da comunidade preconizando a subordinação da política enquanto vontade ao mercado enquanto espontaneidade. Como é óbvio, uma tal tese não poderia deixar de levar à supressão significativa da intervenção estatal em múltiplas áreas da esfera pública.

Nos últimos trinta anos, a Europa foi atravessada pelo confronto entre a tentativa de resistência de um voluntarismo social-democrata escassamente afirmativo e a voracidade tendencialmente hegemónica de um neoliberalismo pretensamente identificado com o espírito do tempo. Este confronto marcou a evolução do próprio projecto europeu. A supremacia do universo da especulação financeira sobre o domínio da economia produtiva, a liberalização das transacções internacionais, quer no âmbito do capital, quer no plano comercial, a utilização das novas tecnologias em prol da intensificação da concorrência entre regiões dotadas de modelos de organização económica e social completamente diferenciados incrementaram a prevalência prática das respostas políticas de inspiração neoliberal no espaço cultural do Ocidente.

Em Portugal, devido à nossa relativa dissonância com o tempo europeu, as coisas passaram-se de uma forma um pouco diferente. Foi já num período anticíclico, após a crise petrolífera dos anos setenta e no contexto da instauração da democracia, que se canalizaram vastíssimos recursos para a construção de um Estado-providência, que até então tinha tido uma existência relativamente incipiente. Impor-se-á salientar que esse esforço de consolidação de um Estado de bem-estar, para além de constitucionalmente promovido e protegido, foi consensualmente entendido como condição imprescindível para a legitimação da opção democrática e a plena concretização de um Estado de Direito. A par disso, os vários e sucessivos governos constitucionais empenharam-se na promoção do desenvolvimento económico, apostando sobretudo na valorização do capital humano e na criação de importantes infra-estruturas territoriais. Hoje sabemos que o país foi mais bem-sucedido na institucionalização da democracia e na edificação do Estado-providência do que na promoção do crescimento económico. Há razões, sobretudo as atinentes a uma radical alteração do contexto internacional, que explicam tal situação.

O que infelizmente o actual Governo pretende levar a cabo, invocando para esse efeito a especial delicadeza da conjuntura que atravessamos, é uma profunda alteração dos equilíbrios que marcaram as últimas décadas do nosso devir nacional. Em nome de uma ideia de refundação da natureza do Estado, aponta-se para uma alteração extrema do contrato social e político subjacente à nossa experiência democrática recente. Isso nota-se em várias áreas, e de forma especialmente ofensiva no nevrálgico sector de educação. Invocando uma suposta liberdade de escolha, enunciada com o primarismo com que alguns prosélitos de um certo liberalismo rebaixam o ideal histórico da liberdade, começa a prevalecer uma retórica política legitimadora de uma prática governativa conducente à desvalorização de escola pública. Se há batalha política que a esquerda democrática deve travar é precisamente esta, a da defesa da escola de inspiração republicana, indispensável à afirmação de uma comunidade de cidadãos livres e iguais.
 

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