O último desejo da minha mãe

Durante muitos anos, para a família de Gerry Ryan, o 4 de Julho significava fogo-de-artifício. Até a matriarca morrer e todos perceberem que o seu último desejo era ter as cinzas lançadas pelos céus do Iowa.

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Enquanto a minha mãe estava a morrer, eu assava há 20 minutos um lombo de borrego. Desde que os meus filhos saíram de casa que eu e o meu marido fazemos das sextas-feiras um ritual, preparando-nos para entrar no fim-de-semana a um ritmo só nosso: bebemos um cocktail e fazemos uma bela refeição à luz das velas.

Quando o telefone tocou, não reconheci o número, mas sabia que aquele indicativo era de Dubuque, no Iowa, e atendi. Era a minha irmã Libby. “Janna”, atirou-me ela. “A mãe está no hospital. Dizem que não se vai safar. Devias vir.”

A minha mãe tinha muito medo de morrer sozinha. Enquanto corria para o aeroporto Baltimore-Washington, percebi que pouco sabia sobre o que se estava a passar. Estaria ela em coma? Será que as minhas duas irmãs estavam com ela? Liguei de novo a Libby para a avisar de qual seria o meu voo e dizer-lhe que me voluntariava para ligar ao nosso irmão, que vive em Detroit.

“Morreu”, disse Libby. “Há coisa de um segundo.” O meu olhar perdeu-se nas nuvens enquanto pensava no que poderia dizer. Não havia nada para dizer.

Combinámos encontrarmo-nos na manhã seguinte na casa funerária, que fica a três horas do aeroporto Chicago Midway, o mais próximo para onde consegui um voo. Quando lá cheguei, Libby estava sozinha no meio do parque de estacionamento de gravilha do edifício baixo de tijolo que fica entre a cadeia de supermercados Piggy Willy e um stand de carros usados. Abraçámo-nos durante imenso tempo porque não encontrávamos as palavras certas para falar.

“Tenho de te falar sobre a mãe”, avisou-me Libby antes de entrarmos. Os joelhos dobraram-se-me, rígidos de três horas a conduzir mas sobretudo como se procurassem uma maneira de escapar dali. Senti os ombros a enrijecerem. O que seria agora? “Então, o que acontece é que a mãe já tinha tudo planeado. Desde há seis meses. Veio aqui com a Mary (a nossa bisavó) e tratou de tudo.” Libby estava com um olhar distante. “Então, hum, ela queria ser cremada. Era esse o seu desejo. Achei melhor dizer-te antes de entrarmos. Para não seres apanhada de surpresa.”

Parecia aliviada por me ter comunicado aquilo e apressou-me pelas portas de vidro, do outro lado o director da funerária já estava à nossa espera. Apresentou-me — a partir daquele momento percebi que só estávamos ali para tratar do que houvesse a tratar —, e o director encaminhou-nos para os cadeirões de pele à volta da sua secretária. Este estranho, que sabia mais sobre os desejos íntimos da vida da minha mãe do que nós, pôs-se a falar de costas para a luz quente de Verão que atravessava as janelas. A Libby tomava notas e fazia perguntas naquele tom de voz que deve ser o que usa normalmente em reuniões. A sala tinha ar condicionado mas eu transpirava sentada naqueles cadeirões.

Eu também queria fazer perguntas mas achei que, se as fizesse, poderia deixar a Libby embaraçada. Até agora era ela quem tinha tratado de tudo. Como se tivesse conquistado o seu lugar naquela sala folheada a madeira. A mim, restava-me ouvir.

E ouvia de facto a voz suave e reconfortante daquele homem, como se fosse a de um sacerdote que prega um sermão em latim. Mas não ouvia nada do que dizia. Ele estava em contraluz e eu tinha de franzir os olhos para o conseguir ver. “Tem alguma questão que queira colocar?”, perguntou-me, com um sorriso forçado, de quem está há décadas a falar com pessoas em luto. Olhei para a minha irmã. Será que ela percebeu que eu não ouvi nada de nada? Passado aquele silêncio constrangedor, ele disse: “Sei que vem de fora”, e o sorriso esmoreceu-lhe.

Estávamos no final de Junho e percebi que as águas efémeras já tinham engordado enquanto atravessava a ponte sobre o rio Mississípi, a caminho de casa da Libby. O ano tinha sido chuvoso e dava para ver os charcos ainda cheios. Talvez as pessoas este ano não quisessem ancorar ali os seus barcos para assistir ao espectáculo de pirotecnia e de acrobacias aéreas do 4 de Julho, que se comemoraria dali a uma semana.

Comecei a recordar-me das vezes em que assistimos ao espectáculo no barco da Libby e do marido, Bill, e de como de ano para ano ficava cada vez maior. De como tapávamos os ouvidos enquanto os jactos nos sobrevoavam e ouvíamos a música patriótica que saía do rádio. No ano passado, a minha mãe tinha-se recolhido, silenciosa, ocultando o quanto a insuficiência cardíaca a deixava debilitada. Será que ainda iríamos estar todos juntos este ano, e todos os que se seguiriam?

O funeral da minha mãe seria dali a uns dias, e depois dele vinha o 4 de Julho. Estávamos na cozinha da Libby a discutir a logística do funeral. “Fogo-de-artifício e isso tudo... não sei... parece-me demasiado cedo”, disse eu. Será que as pessoas iriam querer ficar mais uns dias logo a seguir ao funeral? Será que queríamos mesmo ter fogo-de-artifício?

Libby estava a tirar os pratos lavados da máquina e hesitava em virar-se para mim. “Disse alguma coisa de errado?”, perguntei-lhe sentindo o que sempre sentia, que tinha acabado de dizer alguma coisa inapropriada. “Bem sabes como a mãe adorava o 4. De como era o único momento que tínhamos para estar todos juntos”, disse Libby. “O que ela queria era que a atirássemos no meio do fogo. Acho que poderia ser mesmo cool.” Libby só podia estar a gozar. “Ah! Certo”, respondi com um sorriso. Era tarde, subi as escadas para o quarto de visitas da Libby e mal me deitei mergulhei num sono profundo.

No início, os nossos encontros do 4 de Julho não eram nada de especial. Lançávamos algum fogo, dávamos uns passeios de tractor e comíamos aquela comida rica em hidratos de carbono da gastronomia americana da região Centro-Oeste. Mas à medida que as crianças foram crescendo e os homens da família se tornavam mais próximos, estes encontros anuais transformaram-se numa coisa completamente diferente.

Os nossos maridos construíam pressões de ar e lançadores de foguetes e toda uma parafernália nova para se entreterem a disparar para os bosques que ficam mesmo em frente. A sensação de que pouco tínhamos em comum foi desaparecendo, os homens começaram a rebaptizar-se com os nomes dos novos explosivos que descobriam como se estivessem no jogo Thunder Kings. Quando chegávamos, eles e as crianças desapareciam para ir comprar “gelo” — não se compram foguetes e baterias no Iowa —, regressando muitas horas depois, já de noite. À medida que iam descarregando os carros, o relvado enchia-se com plataformas, armações metálicas, enormes tubos propulsores. Apareciam grandes “bolos” com dezenas de foguetes lá dentro para o fogo preso, fontes de fogo para os miúdos, as baterias e os lançadores de foguetes eram alinhados. Na manhã seguinte, os miúdos ganhavam guloseimas se limpassem o relvado dos cartuchos e invólucros vazios dos disparos da véspera — houve um ano em que percebemos que era má ideia deixá-los perto da zona de lançamento do fogo.

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O 4 de Julho ?é celebrado com fogo-de-artifício na casa de Libby, uma das filhas de Gerry Ryan (no topo, numa fotografia de 2001) Fotografias cedidas por Janna Bialek

Com o tempo, aprendi a calar os meus receios de que alguém perdesse os dedos durante os lançamentos e de milhões de outras coisas que podiam correr mal. E passei a apreciar a atitude da minha mãe. Ela dirigia aqueles encontros como se tudo estivesse a ser feito em sua homenagem. Parecia feliz. Nunca nada de mal aconteceu no 4 de Julho. Nunca choveu. As faúlhas nunca voaram para os campos em volta. O fogo-de-artifício nunca foi um fracasso.

Aprendi a confiar, como a minha mãe confiava. Ou pelo menos assim o parecia.

A minha mãe estava mais próxima das minhas irmãs do que de mim ou do meu irmão. Eu era a filha que estava longe, em Washington, de quem se orgulhava mesmo sem saber. Aquela que não a conhecia verdadeiramente, que não lhe conhecia as preocupações nem o que a fazia feliz. Eu era aquela que nem sabia em que banco tinha a conta, quais os amigos que deveríamos avisar, quais as canções que gostaria de ter no seu funeral. As minhas irmãs sabiam-no. Tinham-se mantido por perto, telefonavam-lhe ou visitavam-na todos os dias.

Pediram-me para escrever o seu obituário, afinal eu era a única que conhecia a vida dela apenas em traços largos e um obituário não passa disso mesmo. Sentada no quarto de visitas escuro e silencioso da minha irmã, longe do tumulto e dos telefonemas sobre o serviço fúnebre, penso no papel que me cabe nesta família à qual não ligo. Penso no que eu significava para a minha mãe, no que ela significava para mim.

Dois dias depois de limpar o apartamento da minha mãe, voltamos a juntar-nos em casa da minha irmã Kayte para um “chili à la Cincinnati”, uma tradição da família e o único prato que a Kayte sabe fazer. Chuck, o marido dela, traz o assunto do 4 de Julho à conversa. “Lembrem-se que conheço aquele tipo em Madison. Sempre querem que lhe ligue?”, pergunta ele a Bill. Eu estava um bocado distraída mas ouvi q.b.. Depois de aclarar a garganta, Bill responde-lhe: “É melhor.” Chuck foi para o telefone e todos lhe prestaram atenção. Da minha parte, ainda estava a tentar perceber o que se estava a passar. Corwin, o meu pragmático sobrinho de 11 anos , diz: “Certifica-te que lhe dizes que ela já foi cremada.” Eu estava boquiaberta com a ideia de que na minha família se conhecessem pessoas que sabem mesmo fazer foguetes com as cinzas dos nossos entes queridos. Era mesmo disto que se tratava? Chuck deixou uma mensagem no atendedor de chamadas e voltou para comer o seu chili.

“Tenho de me ir embora a seguir ao funeral”, disse. “Tenho de ir para casa, não posso ficar para o 4.” E todos ficaram a olhar para mim. “Acho que pode esperar. De qualquer forma, as cinzas já estão lacradas”, disse Bill. Então, estava mesmo decidido. As celebrações do 4 de Julho teriam de ficar para o próximo ano. Da cozinha veio um gemido.

Quando éramos miúdos, aos fins-de-semana empoleirávamo-nos na carrinha Country Squire e íamos para o Kentucky, para um cemitério sem árvores que agora está virado para a auto-estrada 75. Era onde estava enterrada a família da minha mãe. Íamos por obrigação mas fazíamos daquilo uma aventura. Éramos ensinados a não saltar por cima das sepulturas, a não faltarmos ao respeito enquanto a minha mãe e a minha avó depositavam flores de plástico, limpavam as ervas daninhas e sussurravam de uma forma doce entre elas e com os mortos. A minha mãe queria ser cremada e atirada para o céu num fogo-de-artifício, e isso era algo que eu sentia como uma violação, como se ela nos quisesse dizer que não confiava em nós para lhe visitarmos a campa, ou, pior, que não queria que nos lembrássemos dela.

Será que as minhas irmãs sentiam o mesmo? Será que elas também tinham sido apanhadas de surpresa? Não acharam tudo isto estranho? Era como se estivéssemos a começar uma conversa sobre dinheiro ou qualquer outro assunto demasiado privado. “Olha”, disse Libby, “a mãe adorava o 4. Pára de complicar a coisa”. “Pensas demasiado”, acrescentou a Kayte.

Para impedir os miúdos de estarem de 20 em 20 minutos a fazer a mesma pergunta, criámos uma regra: não havia fogo-de-artifício antes de se vislumbrarem no céu as primeiras duas estrelas. A minha mãe já tinha morrido há um ano e estávamos de novo todos juntos, prontos a cumprir o seu último desejo. Os homens andaram silenciosos — mas não de uma forma necessariamente solene para que aquele dia fosse recordado mais com saudade e não com tristeza. Passaram horas a fazer uns lançamentos pequenos mas ensurdecedores. Eu própria tinha os nervos à beira da explosão e só me lembrava de como a minha mãe também odiava aquele tipo de demonstração inútil.

A zona de fogo e as cadeiras do relvado, que costumavam ficar mais afastados, já na orla do campo em frente, foram trazidos até à estrada, perto de casa. Queríamos sobretudo sentir-nos unidos mais do que divididos pelos dois grupos habituais, “os observadores” e “os isqueiros”. Quatro grandes lançadores já estavam alinhados na sua saudação ao céu, e dentro deles os foguetes com etiquetas coladas a dizer “O Mercenário”, algo que me pareceu tão inapropriado para aquela ocasião que as descolei até ver o cartão a nu com as cinzas da minha mãe lá dentro. Encontrei um marcador Sharpie e escrevi: “Amo-te. Sempre. Adeus.” E passei o marcador ao do lado.

Não sentimos o dia a passar como o último do adeus às cinzas da minha mãe; tinha sido um dia como outros. Senti saudades do papel que ela reservava para si naquelas alturas, sempre tranquila enquanto alertava os miúdos para que tivessem cuidado, como se toda aquela loucura fizesse parte de um programa de televisão. E foi então que percebi claramente que ela tinha sido a nossa audiência durante todo aquele tempo. Ela ficava simplesmente ali, a aplaudir-nos por sermos quem somos — os filhos dela, os netos dela. O 4 de Julho podia ser o Dia da Independência mas para nós tinha outro significado: éramos dependentes uns dos outros.

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Chegou o momento do adeus. Cada um dos quatro miúdos pegou num pequeno maçarico que os nossos maridos tinham acendido para nós. Aproximámo-nos das mechas dos quatro foguetes que a continham no interior e acendemo-las. Depois, afastámo-nos. Milagrosamente tudo decorreu sem incidentes. Um a um, os quatro foguetes lançaram um assobio enquanto as cinzas saíam disparadas para os céus do Iowa. Ergueu-se uma longa cauda branca de luz e os explosivos rebentaram, mas os cartuchos só detonaram à terceira ou quarta vez, estourando em pequenas manchas brancas. Daquelas nuvens de fumo e com cheiro a dióxido de carbono choviam ciscos para o relvado, para a entrada da casa, nos meus ombros e no meu cabelo. Demos abraços apertados e ficámos a sentir o momento.

Foram os Thunder Kings a romper o silêncio: “Prontos?” Os “observadores” sentaram-se e a música subiu de tom. Este ano, não tinham começado por libertar o fogo pequeno para depois chegarem ao maior — mantiveram o céu repleto de cores, cada um à sua vez numa composição maravilhosa naquele escuro céu do Iowa.

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post     

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