O Reino Unido, o sonho e o pesadelo europeu

O Reino Unido aderiu a um sonho europeu. A sua saída não é causa, é consequência do pesadelo europeu dos nossos dias, e que não só os britânicos sentem.

Quarenta e três anos após ter integrado (com a Irlanda e a Dinamarca) o primeiro grupo de países que alargou o núcleo inicial da então CEE, o Reino Unido acaba de decidir ser também o primeiro a desligar-se da UE. Os contornos precisos deste processo estão ainda por definir (permanecerá no Espaço Económico Europeu como a Noruega ou a Islândia? Levará mais longe a ruptura?), mas o sentido político do voto de 23 de Junho é inegável, e as suas consequências bem sentidas dentro e fora das suas fronteiras.

A primeira metade do século XX viu a Inglaterra sofrer uma transformação profunda no seu estatuto. Depois de por duas vezes ter enfrentado a Alemanha e seus aliados em guerras de proporções inauditas, o RU foi reconduzido à sua dimensão insular, perdido o Império, e como potencia de segunda linha face aos colossos americano e soviético. Neste quadro, voltou-se decisivamente para a Europa. Primeiro, tentando dinamizar uma zona de livre comércio (a EFTA), mais tarde acabando por aderir ao projecto da CEE.

Em 1973, a adesão do Reino Unido à CEE teve lugar num quadro que se caracterizava por dois aspectos: (a) o modelo CEE – assente na premissa de que a integração económica coloca problemas que transcendem uma mera zona de livre comércio e exigem uma estrutura política que enquadre e regule o poder económico, se articule com uma forma de partilha de soberania, e se coloque no campo da democracia política – sobrepôs-se claramente ao modelo EFTA que se abstinha de estabelecer qualquer forma de condicionamento político (aceitando regimes autoritários como o português...) e de estrutura de partilha de poderes entre estados; (b) o “estado social europeu” que vinha a ser construído no pós-guerra nos países da CEE espelhava um percurso idêntico do RU (basta recordar o sucesso do seu Serviço Nacional de Saúde ou a explosão da sua rede escolar). O carácter fortemente redistributivo das politicas publicas que constituíam o cimento social destes novos regimes, e que a CEE viria a alargar a uma dimensão de redistribuição entre nações com as suas políticas comuns (tão importantes, p. ex., na década de 80 nos casos de alargamento a sul), recebia então o apoio transversal de várias famílias políticas, do centro direita à esquerda. Os pergaminhos democráticos que eram exigidos tiveram enorme impacto nas transições da “terceira vaga de democratização”.

A imagem da UE como um polo de progresso e solidariedade está hoje muito distorcida. Curioso é reconhecer que na campanha para este referendo, mesmo os defensores da permanência do RU na União clamavam que um voto positivo lhes daria mais força para negociar transformações profundas, já que não viam como fosse possível “vender” ao eleitorado o actual status quo (apesar de apreciáveis cedências feita no inicio deste ano). E foi igualmente interessante verificar como os apelos da esquerda britânica, nomeadamente dos sindicatos, que equacionavam a permanência com a salvaguarda de direitos sociais encontrou muito pouco eco entre os seus eleitores tradicionais: os bastiões Labour em Inglaterra votaram maioritariamente pelo “Brexit”, mostrando como a imagem da UE actual se afasta desse arquétipo. A imagem que a UE hoje projecta (bem para além das fronteiras do Reino Unido) não é a de uma entidade apelativa e capaz de responder aos anseios de sectores importantes dos seus cidadãos.

As sondagens evidenciaram que a divisão de partiu o RU se pode correlacionar com alguns factores. Tirando casos em que a questão “nacional” assume um peso decisivo (Ulster, onde a relação com a República da Irlanda é capital; Escócia que há bem pouco tempo teve um referendo sobre a sua independência, e que votou esmagadoramente pela permanência em função dessa sua identidade), as divisões passavam por factores como idade (velhos pelo “Brexit”, jovens pelo “Bremain”), níveis de educação e rendimentos (com os mais elevados a oporem-se à saída), taxa de urbanização (com as grandes cidades a votarem pela permanência). Há até um paradoxo interessante: sendo o tema da imigração claramente o que mais dividendos rendeu nesta campanha, as zonas do país com maiores taxas de imigração (como a metrópole londrina, onde cerca de metade dos habitantes não são britânicos) votaram pela permanência, ao passo que as zonas menos afectadas directamente por esses fluxos votaram pela saída. Dir-se-ia que se trata de um retrato dramático do processo político do novo milénio: a globalização traz benefícios acrescidos a uma minoria com facilidade de acesso ao poder político, ao passo que grandes sectores (possivelmente maioritários) da sociedade se vêem confrontados com perda do seu estatuto e nível de vida. Neste particular, a corrente dominante na UE e as políticas fundamentais do governo de Cameron pouco ou nada se distinguem: ambas tem feito das “reformas estruturais” que visam, como o seu nome bem indica, substituir o consenso do pós-guerra em favor de um estado social redistributivo e de uma união política reguladora da actividade económica por uma nova visão radical que desprotege quem a globalização mais ataca e concede rédea livre ao mundo financeiro. Talvez haja no funcionamento aberrante da moeda única – grande responsável por desfazer em quinze anos processos voluntaristas de convergência das décadas anteriores, e exemplo cimeiro do poder fáctico da Alemanha unificada – um exemplo da profunda transformação que o domínio da UE por políticas de direita (com a conivência de sectores social-democratas) tem vindo a levar a cabo. O principio da subordinação do poder económico ao político parece evaporar-se – e a campanha britânica pôs em relevo esse novo espírito, insistindo à saciedade na necessidade de “seguir os mercados”. E os pergaminhos democráticos vão-se afundando com a entrada em cena de organismos poderosos que nenhum tratado sancionou (como o Eurogrupo), capazes de se imporem a entidades legitimas como parlamentos nacionais (ou mesmo a consultas eleitorais directas, como na Grécia). Curiosamente, o que os britânicos fizeram foi , mais uma vez, afirmar o primado do político contra os ditames da “economicamente correcto” – uma manifestação de democracia.

Que consequências trará a decisão do Reino Unido? Em política, não há caminhos pré-determinados: tudo vai depender da resposta que for dada a nível europeu. Por um lado, é bem possível que que os primeiros reflexos sejam internos, e que a questão das nacionalidades que compõem a união seja novamente levantada na Escócia e no Ulster. Tal desenvolvimento não deixará de ser lido com olhos bem atentos em todos os países que são estados multinacionais, como a Espanha ou a Bélgica. Em segundo lugar, aberta que está a porta de saída da UE, o efeito dominó não deixará de estar presente. Vários são os movimentos políticos que tentarão replicar o processo britânico – mesmo no coração da Europa (como a França ou a Holanda). Para o travar será necessário que a UE não enterre a cabeça na areia, reafirmando o carácter bem-fundado das suas opções recentes, mas que encete a breve trecho um processo muito significativo de mudança de rumo. As questões que a globalização coloca não são nacionais – dizem respeito a toda a Europa. As respostas nacionalistas e protecionistas demonstraram no passado (p. ex, no entre-guerras) que são perigosas e ilusórias. Mas o fosso que se alarga entre os que dela beneficiam e os que por ela são atingidos nos seus direitos clama por um revisitar dos princípios solidários em que assentou o prestigio da construção europeia. E será muito difícil dar  a palavra aos cidadãos europeus e manter a União na sua configuração presente. Por isso é tão importante reformar para sobreviver.

O Reino Unido aderiu a um sonho europeu (talvez à contre coeur, mas aderiu). A sua saída não é causa, é consequência do pesadelo europeu dos nossos dias, e que não só os britânicos sentem.

Investigador, antigo aluno da Universidade de Oxford

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