O reino continua unido

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Pode não ter tido um resultado “histórico”, no sentido que lhe davam os apoiantes da separação. Mas o referendo sobre a independência da Escócia foi, a muitos títulos, exemplar. David Cameron teve razão ao dizer que “será lembrado como uma poderosa demonstração da força e da vitalidade da nossa velha democracia”. Tudo se passou “nas urnas e de forma pacífica e tranquila”. Poder-se-ia acrescentar uma enorme afluência, precedida de um vigoroso debate.

Foi igualmente exemplar porque não se tratou de um debate sobre batalhas. Bravehart não esteve presente no confronto político sobre o futuro da Escócia. Percebe-se que tenha sido assim. A Inglaterra e a Escócia viveram juntas durante três séculos e partilharam tudo o que houve de bom e de mau para partilhar. Da revolução industrial ao império onde “o Sol nunca se põe”, moldaram o mundo moderno. Não deixaram apagar as luzes da liberdade, quando o totalitarismo nazi ocupou a Europa.

Pelo contrário, a campanha do “sim” foi construída sobre uma plataforma ideológica e política que teve a sua expressão mais evidente numa frase omnipresente: “No more Tories”. Os escoceses querem manter intacto o Serviço Nacional de Saúde, um ensino que continue gratuito e uma sociedade menos desigual. Alex Salmonde foi, aliás, ainda mais longe ao prometer o fim “das armas de destruição maciça” (leia-se dissuasão nuclear britânica) cuja frota de submarinos está sediada na Escócia. As suas palavras lembram as do Labour, na década de 80, quando se lembrou de defender o “desarmamento unilateral” em plena Guerra Fria. Foram estes os termos escolhidos pelo Partido Nacional da Escócia para o confronto. Provavelmente, uma maioria de escoceses do “sim” como do “não” identificam-se com o seu programa político.

A diferença terá sido outra. Os independentistas viam na sua comunidade nacional o melhor refúgio contra os ventos de mudança levantados pela globalização, cujas consequências não percebem e para as quais não vêem resposta em Londres. A maioria preferiu ficar sob a protecção do Reino Unido. Salmond tirou a conclusão da sua derrota: demitiu-se. Era ele ou era Cameron, dificilmente haveria um meio-termo.

Retaliação?

Foi um referendo exemplar também para o Reino Unido. Não foi apenas por amor à democracia que as elites políticas britânicas aceitaram há dois anos o referendo na Escócia. Foi porque ignoraram o seu significado político, acreditando que estava ganho à partida. Ficaram em pânico 15 dias antes, quando se deram conta da possibilidade de uma vitória do “sim”. Assumiram compromissos que vão obrigar a grandes mudanças no sistema constitucional britânico. O maior problema será o lugar e o papel da Inglaterra. David Cameron voltou a ceder aos radicais, desta vez sobre o estatuto da Inglaterra num Reino Unido mais federal. Muitas vozes conservadoras inglesas já começaram a exigir igual direito ao autogoverno, mesmo que se perceba que os move sobretudo um sentimento de retaliação. Com 53 milhões de pessoas e 85% do PIB britânico, a Inglaterra é o centro de uma União em que nem todos são ou podem ser iguais. Um Parlamento inglês acabaria por tirar o lugar simbólico e único de Westminster no sistema político britânico. O Labour, que já foi a principal força política escocesa, vai ter de encontrar o seu caminho nesta batalha entre conservadores e anti-conservadores que ameaça contagiar o resto.

Alívio em Bruxelas e em Washington

Finalmente, respirou-se de alívio nas capitais europeias e em Washington. Ver uma potência europeia pôr em causa a sua unidade e o seu estatuto internacional seria um sinal tremendamente negativo, a juntar-se a muitos outros sinais negativos que hoje afligem a Europa. Nem vale a pena lembrar o que representa ainda hoje o Reino Unido, do seu poder militar e económico ao seu estatuto no sistema da Nações Unidas. “Para a Escócia seria um erro, para o Reino Unido seria uma catástrofe”, escreveu a Economist.

Para a Europa um péssimo presságio. Os sinais de desintegração que se multiplicam-se um pouco por todo o lado não se traduzem apenas nos movimentos independentistas, mas também na ascensão de forças políticas radicais que fazem da União Europeia, do país vizinho ou dos imigrantes a origem de todos os males. A crise acentuou esta tendência, que a história da Europa aconselha a não desvalorizar. Sobretudo numa altura em que o Ocidente enfrenta uma crescente desordem internacional que lhe é hostil e que está a pôr em causa o sistema que criou depois da II Guerra e os valores sobre os quais assenta. A segurança europeia está a ser desafiada nas suas próprias fronteiras. Na Ucrânia, onde a Rússia alterou pela força fronteiras garantidas por tratados internacionais, mas também no seu flanco Sul, com a emergência da face mais bárbara do jihadismo. Os Estados Unidos precisam de aliados fortes do lado de cá do Atlântico. Ontem, a França juntou-se aos bombardeamentos americanos contra as bases do Estado Islâmico. Imagina-se o efeito internacional de uma Grã-Bretanha incapaz sequer de se manter unida. “É uma péssima altura para quebrar a Grã-Bretanha”, escreveu Gideon Rachman no Financial Times.

E isto conduz-nos a outra questão fundamental. O Reino Unido tem um outro referendo marcado (até 2017) que pode, de novo, alterar radicalmente o seu destino e o destino da Europa. David Cameron acreditou que, com ele, conseguiria “desarmar” a ala antieuropeia do seu partido. Falhou rotundamente. A incerteza manter-se-á. O primeiro-ministro não quer ficar na História como o líder britânico que quase perdeu a Escócia e que ainda pode perder a Europa. Até por isso, muita coisa terá de mudar em Londres para que tudo fique essencialmente na mesma: um Reino unido numa Europa unida. 

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