O rei prudente

Os cognomes dos monarcas são colocados a posteriori. Costumam ser sínteses dos seus reinados. Elogioso quase sempre. Em Espanha, quando Santiago Carrillo classificou Juan Carlos I como “o Breve”, vivia na ideia mítica de uma revolta popular contra o sucessor do ditador Franco. Depois de conhecer na Roménia os emissários vindos de Madrid que lhe falaram de um projecto democrático, mudou de percepção. Juan Carlos e Carrillo ficaram amigos e, sem o notável equilíbrio do dirigente comunista, a transição democrática espanhola teria sido bem mais difícil. De Felipe VI, pelo discurso de proclamação desta quinta-feira, ficou uma primeira ideia: a do rei prudente.

Felipe é o primeiro monarca espanhol com estudos superiores, conhecedor de vários idiomas, preparado nas mais diversas matérias. Teve formação militar, ainda indispensável para ser chefe de Estado em Espanha. Tal como o pai, não tem corte, mas casou com uma plebeia, à qual os círculos ultraconservadores espanhóis não perdoam ser divorciada e ter feito um aborto.

Nos 30 minutos da sua intervenção foi prudente. Seguiu o espírito e a letra da Constituição. Deu ênfase, sem dúvida pelo momento político do seu país, à unidade do Estado. Não referiu a palavra regeneração, que na história política espanhola lembraria a monarquia conservadora do final do século XIX. Optou pela aposta de revitalizar as instituições. Garantiu que não exorbitará das suas funções, mas falou de uma monarquia renovada para um novo tempo.

Balizada a sua intervenção pela prudência e pelas normas constitucionais, o monarca só tinha à sua disposição os gestos. Houve um, hoje, de grande repercussão: foi de carro aberto que saiu do Parlamento rumo ao Palácio Real, um trajecto de alguns quilómetros pelas ruas do centro de Madrid. Aconselhado pelos serviços de segurança a fazer o percurso num veículo fechado, Felipe VI escolheu o descapotável. Foi em pé, a baixa velocidade, com algumas paragens de permeio, respondendo aos aplausos de dezenas de milhares de pessoas. Não teve um banho de multidão nem a gente que acorreu ao seu casamento, em 20 de Maio de 2004, mas o rei aproveitou ao máximo esta proximidade.

O gesto tem este significado. Há antecedentes que recomendariam outra solução. Em 31 de Maio de 1906, o rei Afonso XIII, bisavô de Felipe, foi vítima de um atentado quando se dirigia, numa carruagem aberta, para o Palácio Real. Uma bomba, dissimulada num ramo de flores, foi lançada pelo anarquista Mateo Morral, mas falhou o alvo. Rolou pela calçada e a deflagração do engenho provocou 24 mortes entre a população na calle Mayor.  

A cerimónia marcada pelo gesto de proximidade e afirmação teve também momentos contraditórios. As três detenções, de duas mulheres e um jovem, que se recusaram a recolher a bandeira tricolor republicana (vermelha, amarela e violeta) que transportavam. A polícia actuou, cumprindo uma decisão do Tribunal Superior de Justiça de Madrid.

Uma atitude anacrónica que, contudo, não incendiou as ruas nem fortaleceu as hostes dos que pretendiam apostar numa manifestação de apoio à República. O efeito de pirómano da decisão judicial não se confirmou. E, ao fim da manhã de hoje, uma concentração de uma centena de republicanos acabou sem incidentes.
 

   

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