O referendo irlandês como questão política (e não só)

Certas causas fracturantes não são (ou já não são) um património da esquerda ou de certa esquerda.

1. Na sexta-feira, a Irlanda submeteu a referendo a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. O referendo suscitou grande atenção internacional e europeia. Por um lado, porque era a primeira vez que um Estado fazia um referendo sobre esta precisa questão (tida por muitos como pouco “referendável”, por ser havida — talvez incorrectamente, dada a sua pertença à esfera dos direitos fundamentais — como matéria de “minorias”). Por outro lado, porque, apesar dos impressionantes avanços das décadas de 80 e de 90, a Irlanda se mostrou sempre, em matéria de costumes, um dos países mais conservadores do Ocidente (veja-se o caso do divórcio e do aborto — este, contudo, claramente diferente por afectar uma terceira pessoa).

Os resultados do referendo irlandês, com mais de 60 por cento dos votos a favor e em todas as circunscrições eleitorais (menos uma, em que o “não” venceu, aliás, tangencialmente) são eloquentes e falam por si. Fossem as circunscrições do norte ou do sul, urbanas ou rurais, de direita ou de esquerda, a tendência essencial do voto foi convergente e isso representa um enorme consenso social e um sério enraizamento na consciência geral (ou na “consciência jurídica geral” como gostamos de dizer, nós os juristas).

2. Interessa-me aqui de sobremaneira mais do que a nota social, moral ou religiosa, pôr em destaque a perspectiva política. É que tem sido pouco evidenciado que tanto na Grã-Bretanha como na Irlanda a Irlanda do Norte continua a ser uma excepção foram Governos de centro-direita e, em especial, os seus Primeiros-Ministros (de resto, conhecidos pela sua afeição religiosa) que tomaram a iniciativa de avançar com o processo de legalização e, mais do que isso, que deram a sua cara pela campanha do “sim”. Tanto David Cameron, em sede de procedimento parlamentar, como Enda Kenny, na campanha referendária, envolveram-se de modo totalmente comprometido e afirmativo. E as declarações que fizeram na sequência das respectivas aprovações não podiam ser mais apologéticas.

Isto significa, em primeiro lugar, e como parece evidente, que certas causas fracturantes não são (ou já não são) um património da esquerda ou de certa esquerda. Ou, pondo as coisas em termos mais avançados mas talvez mais apropriados, certas causas fracturantes afinal já não são fracturantes. Se se pensar que, em termos europeus, Enda Kenny é um nome forte do PPE (de inspiração democrata-cristã) e os conservadores ingleses estão à direita do PPE, não é preciso dizer muito mais.

3. No âmbito do PPE, o caso da Irlanda é, aliás, interessante e um tanto surpreendente. Em matéria de costumes, havia geralmente uma linha de fractura dentro do grupo. Os nórdicos, a Holanda, a Bélgica, a França, Portugal, a República Checa e metade dos deputados alemães (isto sem prejuízo de excepções individuais em todos eles) inscrevem-se numa linha mais progressista. A esta linha juntam-se também frequentemente a Roménia e a Bulgária, em que os partidos do centro-direita têm más relações com as correspondentes Igrejas ortodoxas (por considerarem que estas foram demasiado “colaboracionistas” com os antigos regimes comunistas). Já, por sua vez, a Espanha, a Itália, a Polónia, a Áustria, a outra metade dos deputados alemães, a Hungria, a Eslováquia, a Eslovénia, a Croácia e a Lituânia têm uma orientação bastante conservadora. Neste grupo, pontificava também a Irlanda e, por isso, não deixa de ser revelador que seja um Governo liderado pelo PPE a levar por diante este referendo. 

3. No plano das consequências políticas, há, porém, duas dinâmicas laterais a considerar. Uma é a de empurrar um eleitorado mais conservador e mais fechado para as franjas da direita radical e da extrema-direita, tradicionalmente homofóbica. Basta ver o que se passou em França onde, apesar de uma menor radicação do catolicismo e de um menor peso da Igreja as manifestações contra o projecto de Hollande foram gigantescas e deram grandes dividendos à Frente Nacional. Não deixa, aliás, de ser curioso que o tema tenha sido muito mais controverso e polémico em França e até em Espanha do que em Portugal. É verdade, no que concerne à táctica dos radicais, que Marine Le Pen tem procurado fugir desse discurso, designadamente incluindo colaboradores directos que são activistas mais ou menos conhecidos (e procura fazer passar por aí um dos vários pontos de ruptura com o seu pai, Jean-Marie Le Pen).

As coisas ganham, porém, um tomo diferente, se pensarmos na extrema-direita de um Haider (Áustria) e, em particular, no projecto de direita radical de um Pim Fortuyn (Holanda). E esta é já a segunda dinâmica política que não deve ser esquecida. Pim Fortuyn, um activista dos direitos das minorias sexuais perfilado muito à direita, queria precisamente defender o “dutch way of life tolerante, inclusivo e até permissivo contra a mundividência dos imigrantes (designadamente, muçulmanos) que tinha por conservadores e retrógrados. O que põe a nu um dos grandes problemas com que têm de se defrontar as sociedades multiculturais. Na verdade, no simplismo da sua mensagem, que acabou, aliás, no seu brutal assassinato a 6 de Maio de 2002 ainda antes das eleições, a luta contra a homofobia passava pela apologia da xenofobia…

4. Esta votação não tem apenas consequências políticas e interpela também as igrejas e a Igreja Católica em especial. Vem dar razão ao Papa Francisco quando quer meditar sobre o papel das mulheres e o papel da família, dos divorciados, dos recasados, dos homossexuais. No Pentecostes não se deu a inversão da multitude da Torre de Babel e passaram todos a ouvir a mesma língua. Não, no Pentecostes, assinalado neste fim-de-semana, todos compreendiam os Apóstolos, mas cada um ouvia-os na sua língua. Repito: na sua língua. Não numa língua única.

SIM e NÃO

SIM. D. Óscar Romero. Foi agora beatificado. Quem viveu o final dos anos 70, não esquece o profeta da paz e da justiça num El Salvador de guerra e pobreza, que abria todos os jornais. Mais do que reis e sacerdotes, precisamos de profetas.

NÃO. Espanha. Há um lado benigno na renovação do sistema partidário. Mas cresce o espectro da ingovernabilidade, da incerteza política e até da fragmentação. Para nós, será fonte de vacina ou larva de contágio?

Eurdeputado (PSD)

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