O reconhecimento da Palestina e o Pacto Briand-Kellogg

O reconhecimento da Palestina neste momento e nas actuais circunstâncias suscita vários problemas graves e significa não o avanço da paz, mas o seu enterro.

Corria o ano de 1927. Em França crescia o sentimento de insegurança perante uma Alemanha em acelerado rearmamento e apostada em alcançar a igualdade militar formal, aproveitando as brechas abertas pelo renovado espírito de compromisso de britânicos e americanos, apostados em manter a paz através da revisão das cláusulas do Tratado de Versalhes consideradas pelos próprios como humilhantes para os alemães.

A traduzir este novo estado de espírito dos dois grandes vencedores da Primeira Guerra Mundial foi abolida a comissão de controlo militar interaliados que tinha como função fiscalizar o desarmamento de Berlim. Incapazes de encontrar alternativas credíveis para atenuar a ameaça à sua segurança, e num extremo sobrevivência, sobretudo depois de Londres e Washington voltarem a recusar-se a dar garantias concretas de defesa comum, os dirigentes franceses trocaram a orientação estratégica pelas proclamações espectaculares de princípios e boas intenções, tendo o ministro dos Negócios Estrangeiros, Aristide Briand, proposto ao seu homólogo norte-americano, Frank B. Kellogg, uma espécie de compromisso universal e perpétuo de paz. No ano seguinte, em Paris, foi assinado com pompa o Pacto Briand-Kellogg que consagrava a renúncia colectiva à guerra nas relações entre os Estados. Onze anos depois começava a Segunda Guerra Mundial cujo horror é conhecido por todos e está muito bem retratado no filme de Roman Polanski O Pianista, baseado na vida do músico polaco Wladyslaw Szpilman.

À semelhança do que aconteceu nos últimos dias em Espanha e França, o Parlamento português, mais precisamente a Comissão de Negócios Estrangeiros, prepara-se para abordar a questão do reconhecimento do Estado da Palestina, o que pretende ser, pelo menos para alguns, um primeiro passo para o seu reconhecimento formal por Portugal, seguindo o que já feito por exemplo pela Suécia (o único país da UE que já o fez enquanto tal, pois os outros, como a Polónia, República Checa, Malta, etc., fizeram-no antes da adesão). Um deputado do PSD, António Rodrigues, defendeu esse passo, fazendo-o em termos parecidos com os do espírito do Pacto Briand-Kellogg: em nome da paz e do compromisso civilizacional. Para além de ser surpreendente o facto de um membro de um partido do Governo assumir esta posição, pois ou não está concertado com o executivo, o que é mau, ou está e é grave, engana-se tanto quanto os “utópicos” (para usar a feliz designação de E.H. Carr) do período entre guerras mundiais. O reconhecimento da Palestina neste momento e nas actuais circunstâncias suscita vários problemas graves e significa não o avanço da paz, mas o seu enterro, para além de levar ao agravamento da tensão entre israelitas e palestinianos e no Médio Oriente em geral.

A simples compreensão do que motiva em primeira instância os Estados permite perceber que uma decisão destas só poderá levar a uma muito maior assertividade por parte de Israel. Julgo que ninguém contesta que os países têm como principal objectivo garantir a sua segurança, e num extremo a sobrevivência, aspecto comum a todos, mas que é ainda mais premente nos casos como o de Israel, que sente a sua existência sempre ameaçada. Para Tel Aviv, o mundo de hoje é um lugar muito perigoso, sendo preciso recuar pelo menos até à guerra do Yom Kippur de 1973 para encontrarmos um momento em que o seu sentimento de insegurança fosse tão agudo: do Irão à Síria, do Iraque ao Líbano, do autoproclamado Estado Islâmico até à possível proliferação nuclear na região, não faltam bons motivos para retirar o sono aos líderes israelitas. Ora, se se somar a este pesadelo de segurança de Israel o reconhecimento de um Estado que tem dentro dele grupos como o Hamas e a Jihad Islâmica, que visam destruí-lo, tal só poderá resultar numa crescente inflexibilidade israelita e maior propensão para usar a força.

O reconhecimento do Estado palestiniano, a acontecer agora, também dificilmente podia vir em pior hora, ou seja, numa altura de crise política em Israel, com o colapso do Governo de Netanyahu e a realização de eleições antecipadas em breve, na sequência da demissão na passada terça-feira dos ministros das Finanças e da Justiça. É apenas previsível que o pretexto da Palestina seja usado para eleger um executivo ainda mais à direita e inflexível na questão de um regresso do processo de negociações, condição indispensável para qualquer acordo de paz. Acresce que se assiste em simultâneo a um agravamento da situação interna nos territórios sob administração palestiniana, com o fim do acordo entre a Autoridade Palestiniana e o Hamas e um recrudescimento da tensão entre eles.

Outro problema grave é suscitado por uma decisão desta natureza por parte dos países europeus de uma forma unilateral, sem concertação e à revelia da própria posição da União Europeia, o que não só enfraquece a própria Europa Unida, como não produz qualquer resultado positivo. A linha oficial da UE consiste em fazer depender o reconhecimento do Estado da Palestina do avanço do processo de paz, o que, de resto, não acontece por acaso e sim por se perceber que a hipótese do primeiro é o instrumento de pressão político-diplomática mais eficaz para o sucesso do segundo. Deste modo, o reconhecimento significa a ruptura com a política seguida pela Europa até aqui e que tem defensores tão importantes para o projecto europeu como a Alemanha. Com as devidas diferenças, talvez fosse bom recordar o que aconteceu na antiga Jugoslávia, onde a engrenagem da barbárie, traduzida, por exemplo, nas imagens de Srebrenica ou Sarajevo, começou com o reconhecimento unilateral da Eslovénia e da Croácia pelos alemães e à revelia dos seus parceiros da UE.

O eventual reconhecimento do Estado da Palestina por Portugal, bem como por outros países europeus, será também sempre contrário à posição dos EUA e não deixará de ter consequências nas relações transatlânticas e luso-americanas, além de colocar Barack Obama numa posição ainda mais frágil ao nível interno (apesar da sua péssima relação com Netanyahu). As alianças têm regras, como, por exemplo, a concertação de posições em assuntos considerados essenciais, além de que não se pode pedir aos norte-americanos que paguem a parte de leão da segurança europeia e depois decidir à sua revelia numa questão destas. Desconfio mesmo que tal poderá ter repercussões negativas nas negociações para a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), cujo sucesso é decisivo para manter a preponderância económica e política do Ocidente e as regras da ordem internacional ocidental, postas em causa pelo tríptico declínio relativo dos EUA, ascensão da Ásia-Pacífico (com grande destaque para a China) e crise da União Europeia.

Se israelistas e palestinianos querem viver em paz e em condições de decência numa perspectiva de tempo longo, o reconhecimento do Estado da Palestina por parte de Israel e deste último por todos os palestinianos (incluindo o Hamas e a Jihad Islâmica), bem como pela generalidade dos países árabes, terá de acontecer num futuro não muito distante, assim como um acordo mais global que inclua as questões dos territórios ocupados, de Jerusalém e dos refugiados. Acresce que Tel Aviv tem de travar a extrema-direita e abandonar a incompreensível lei que parece pretender impor a natureza judaica do Estado de Israel. Mas, apesar de tudo isto, o reconhecimento da Palestina neste momento por países como Portugal não facilita, antes dificulta, um acordo geral que, esse sim, poderá dar algumas hipóteses à paz. Caso contrário, como tantas vezes aconteceu no passado, por exemplo entre as guerras mundiais, as decisões baseadas em ilusões e boas intenções acabam por custar milhões de vidas.

Universidade Nova e IPRI

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