O que se passa hoje no Mediterrâneo não tem nada a ver com o tráfico de escravos

Cientistas europeus e americanos criticam planos da União Europeia para atacar navios que transportam imigrantes da Líbia para Europa. "Estão a vender uma perigosa perversão da história", denuncia artigo com mais de 300 assinaturas.

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“Se os que embarcam hoje para a Europa pudessem, aproveitariam os voos que as companhias aéreas mais baratas fazem entre o Norte de África e a Europa", escrevem os cientistas /Antonio Parrinello/Reuters

Mais de 300 universitários europeus e americanos assinam uma denúncia da operação militar planeada pela União Europeia no Mediterrâneo contra o tráfico de seres humanos a partir da Líbia. Na verdade, põem em causa esta premissa no artigo publicado no site OpenDemocracy.net: “O que se está a passar hoje não se parece nem remotamente com o comércio de escravos transatlântico. Os africanos escravizados não queriam deixar a sua casa”, escrevem. “Hoje os que embarcam na viagem para a Europa querem partir.”

A EUNAVFOR Med terá por missão “identificar, capturar e destruir embarcações” utilizadas para fazer transportar imigrantes a partir da Líbia para a Europa, através do Mediterrâneo, ficou estabelecido numa reunião do conselho de ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros a 18 de Maio. Esta acção ainda aguarda luz verde do Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas faz-se à luz de uma lógica que considera que os culpados da enorme maré humana que está a chegar às costas sul da Europa são os intermediários, aqueles que transportam os imigrantes.

“Os traficantes de seres humanos são os mercadores de escravos do século XXI e devem ser levados a responder perante a justiça”, afirmou recentemente o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi. O Presidente francês François Hollande levantou-se também contra os “novos negreiros” do Mediterrâneo.

Mas o que os líderes da União Europeia estão a fazer, denunciam estes académicos, muitos deles especialistas em história da escravatura, é a “vender uma perigosa perversão da história” para justificar o uso “do poder naval e tecnológico de algumas das nações mais ricas de uma forma que pode conduzir à morte de homens, mulheres e crianças de algumas das regiões mais pobres e mais arrasadas pela guerra”.

“Se os que embarcam hoje para a Europa pudessem, aproveitariam os voos que as companhias aéreas mais baratas fazem entre o Norte de África e a Europa, cujo preço é apenas uma fracção mínima do custo da passagem extraordinariamente perigosa por mar. E não são os ‘negreiros’ ou ‘traficantes’ que os impedem de aceder a este caminho seguro”, escrevem os cientistas, de universidades prestigiadas como Oxford, Harvard, London School of Economics, Yale e Princeton, entre outras.

É verdade que alguns candidatos à imigração ficam detidos em condições miseráveis na Líbia – por vezes em centros de detenção financiados pela UE, sublinham – , e passam por perigos imensos para tentar chegar à Europa, e são explorados. Mas têm esperança de conseguir chegar a um país onde os seus direitos sejam respeitados, onde possam ter acesso a trabalho, educação, a não serem alvo de perseguição.

“Isto não é o equivalente contemporâneo do tráfico de escravos transatlântico. Tentar esmagá-lo com força militar não é assumir uma posição nobre contra a escravatura, ou contra o tráfico. É simplesmente continuar uma longa tradição, na qual Estados, incluindo os Estados esclavagistas dos séculos XVIII e XIX, usam a violência para impedir que alguns grupos de seres humanos se movimentem livremente”, escrevem no site Open Democracy.

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