O que quer, o que pode esta língua?

No âmbito do especial Ano Grande do Brasil, o PÚBLICO faz a uma série de personalidades a mesma pergunta: Para onde vai o Brasil?

A pergunta que o PÚBLICO nos faz é daquelas que ganham força afirmativa justamente por estarem na forma interrogativa – ao menos no que diz respeito à língua, que insistimos em chamar de portuguesa, como a demarcar afetivamente o ponto de partida de uma viagem cujo destino não importa ou ainda não é conhecido.

O que quer, o que pode esta língua?, perguntou Caetano Veloso numa canção dos anos 1980. O que quer, o que pode esta canção?, perguntaram José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski um recente aula-show na Fundação Calouste Gulbenkian. A questão vai se reformulando, e a cada reconfiguração ganha novo impulso. Na tradição da megalomania brasileira, respondo: é como se essas perguntas afirmassem que podemos tudo.

Wisnik e Nestrovski como que demarcam o caráter literário da canção brasileira, legítima fundadora da língua nacional. O português do Brasil é cantado, isso não é novidade, mas também é sincopado como o que se fala e se canta-falando nas periferias de São Paulo. Para captar o português brasileiro é preciso ter ouvido, como o poeta Francisco Alvim, o escritor André Sant’Anna ou os comediantes do Porta dos Fundos.

É como um latim falado por crianças, na feliz definição de Paulo Rónai, o erudito que partiu de Budapeste, fugindo do nazismo, para vir parar no Brasil – não sem parar antes em Lisboa, onde ouviu um idioma muito diferente daquele que estudava na Hungria, somente a partir de livros e jornais que escassamente vinham lhe cair nas mãos.

Há quem diga que a extraordinária história de Rónai foi a inspiração de Chico Buarque para escrever seu romance Budapeste – quem duvidar poderá tirar a prova, no breve ensaio Como aprendi o português, de título auto-explicativo, uma das mais belas declarações de amor já escritas sobre o idioma.

Rónai foi um dos mais notáveis estudiosos da língua portuguesa, tendo publicado numerosos ensaios, dicionários e traduções literárias. Num de seus textos sobre a tradução, campo literário em que o Brasil vem se desenvolvendo fortemente, ancorado tanto em sua ampla matriz multicultural quanto em seu isolamento linguístico na América Latina, Rónai defendeu algo que muitas vezes é visto como um problema: para ele, a contaminação da língua por estruturas estrangeiras ajuda a trazer novas estruturas sintáticas para a literatura nacional.

O Brasil aprendeu a se orgulhar da miscigenação linguística que vem marcando sua literatura. O narrador de Budapeste, por exemplo, toma emprestado estruturas frasais de traduções ruins, da fala estropiada dos estrangeiros que vão inseminando o idioma de adoção.

Essa estranha mistura de erudição e insolência linguística gerou outras obras literárias poderosas, como Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. No campo da tradução literária essa miscigenação linguística também rendeu frutos, sobretudo pela possibilidade de traduzirmos à nossa maneira. À diferença dos vizinhos hispanos, que sofrem com o imperialismo editorial espanhol, conseguimos, nos contratos internacionais de tradução, garantir a coexistência de diferentes traduções de um mesmo livro, para o Brasil e para Portugal.

O curioso é que, nesse processo radical de singularização e de mudanças aceleradas, tenhamos preservado traços que ainda estão na origem da nossa tradição.

O poeta e tradutor Paulo Henriques Britto, certa vez, contou-me que, estudando a poesia de Camões, deu-se conta de que, lidos com o atual sotaque português, a métrica não fechava. Ele e seus alunos então leram os mesmos sonetos com o sotaque do Brasil de hoje – e foi batata, como diria Nelson Rodrigues: a métrica fechou perfeitamente. (“Gosto de roçar a minha língua na língua de Luís de Camões” – Caetano, mais uma vez.)

Do ponto de vista do mercado editorial o Brasil tornou-se, nos últimos anos, um novo foco de interesses internacionais. Conglomerados editoriais multinacionais seguiram o caminho já trilhado por editoras ibéricas alguns anos antes e romperam com o modelo praticamente intocado de empresas familiares que vigorava desde meados do século 20.

Com gerações inteiras de leitores em formação, vultosas compras de livros pelos governos das diferentes esferas administrativas (a atual menina dos olhos das editoras) e a economia em relativo crescimento, o Brasil se tornou uma fonte potencial de leitores para os editores dos países que já não veem mais por onde formar grandes contingentes de público.

Com esse processo, veio a concentração de mercado que já se conhece há tempos em escala internacional: a disputa mundial de grandes grupos por fatias de mercado reproduz-se, em escala nacional, nas livrarias brasileiras. Quem será essa geração de leitores (e escritores) que todos esperamos com tanta avidez?

A palavra escrita de fato nunca teve tanto protagonismo no Brasil como nos dias de hoje. É evidente que o fenômeno tem a ver com as redes sociais e a internet – adolescente, eu só me comunicava por escrito com meus amigos em longas viagens internacionais. Mas as consequências vão além das que se observam em sociedades mais cristalizadas, acredito eu.

Parece que essa circunstância histórico-tecnológica um tanto banal foi o que permitiu os meninos de hoje apoderarem-se da língua de forma inesperada – e isso aí talvez tenha algo a ver com o “latim falado por crianças” que Paulo Rónai ouviu ao aportar no Brasil.

Curador da FLIP-Festa Literária Internacional de Paraty

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