O PS francês é um partido tão dividido que duvida do próprio nome

Primeiro-ministro propõe alianças ao centro e talvez deixar cair a designação “socialista”. Com o congresso ainda sem data, barões socialistas trocam farpas em público.

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“Se a esquerda não se reinventar, pode morrer", afirmou Manuel Valls NICOLAS TUCAT/AFP

Chegou a altura de tirar a palavra “socialista” ao nome do PS francês? O primeiro-ministro Manuel Valls desencadeou uma tempestade que revela as brutais divisões do partido, ao sugeri-lo, numa entrevista em que contrariou os princípios de união à esquerda, pelos quais os socialistas se orientam desde o congresso de 1971, aquele em que François Mitterrand assumiu o controlo do PS: “Porquê recusar a mão aos que se reconhecem no centro, no centro-direita ou que não se reconhecem nos partidos políticos tradicionais?”

Manuel Valls disse que é necessária “uma esquerda pragmática, reformista e republicana”, e responde “porque não”, quando os jornalistas da revista L’Obs (Nouvel Observateur, agora com um novo nome) lhe perguntaram se o PS deve mudar de nome. Valls já antes tinha apresentado propostas para mudar o nome ao partido – aliás, Martine Aubry, ex-líder do PS, já lhe tinha mostrado a porta da rua em 2009 por causa disso.

Mas hoje, como primeiro-ministro, Valls defendeu que “é preciso acabar com a esquerda passadista, que se agarra a um passado defunto e nostálgico”. O caminho do futuro está nas alianças ao centro: “Se a esquerda não se reinventar, pode morrer. É preciso um novo compromisso entre todas as forças progressistas”, afirma, convidando à “construção de uma 'casa comum'”, algo semelhante ao Partido Democrático italiano.

Estas declarações tiveram o efeito de uma fagulha na pradaria. Foram vistas como uma resposta ao desafio dos 39 deputados rebeldes socialistas, representantes da ala esquerda do partido, que se abstiveram na votação no Parlamento do Orçamento do Estado para 2015 – entre os quais os ex-ministros Benoît Hamon, Aurélie Filippetti e Delphine Batho. E também à divulgação, no domingo, das propostas da antiga líder do partido, Martine Aubry, para a “reorientação da política económica” do Executivo, em que apela à fundação de uma nova social-democracia, claramente alicerçada à esquerda.

“Cala-te”
Mas as respostas a Valls foram em grande parte hostis. “Caro Manuel, é um erro. De momento, concentra-te no teu trabalho de primeiro-ministro”, lançou, quase como uma bofetada, o presidente da Assembleia Nacional, Claude Bartolone. Henri Emmanuelli, ex-dirigente do PS, aconselhou Valls a “calar-se”, pois a linha que ele defende “não é maioritária na esquerda francesa nem no Partido Socialista”. Uma sondagem BVA para o jornal económico Les Echos dá-lhe razão: 69% dos simpatizantes socialistas estão contra uma mudança de nome.

Benoît Hamon, transformado em feroz crítico do Executivo a que pertencia até há dois meses, aproveitou para dizer que a política do Governo “ameaça a República” e encaminha-a para “um imenso desastre democrático”. O ministro porta-voz do Governo, Stéphane Foll, convidou-o a ir-se embora: “Se é assim, que deixe o PS”.

O actual líder do PS, Jean-Christophe Cambadélis, exasperado com estes sinais de luta interna, fez uma declaração fraca em retórica mas forte em efeitos mediáticos: “PS quer dizer Partido Socialista e não PlayStation. O que está em causa não é matar o máximo de socialistas no menor tempo possível. Ser socialista é trabalhar por uma sociedade mais justa. Acho deplorável este jogo de ‘eu’, que valoriza as declarações curtas, as posturas”.

Mas nem do líder do Movimento Democrático (MoDem), o maior partido centrista, Valls obteve solidariedade. O primeiro-ministro mencionou pelo nome François Bayrou, o líder do MoDem, como alguém que deveria ter sido chamado para a governação, pois apelou ao voto em François Hollande, nas presidenciais de 2012. Mas Bayrou não está interessado em entrar na “casa comum” com que sonha Valls. “Excluo que o centro sirva hoje de bóia de salvação [ao Governo socialista]”, disse em entrevista a Les Echos.

“Se François Hollande tivesse seguido uma orientação diferente, decidindo dizer a verdade ao país, e abandonasse a parte ideológica do seu projecto (…), a trajectória do país poderia ser sido profundamente mudada. Teria sido uma escolha histórica, mas ele preferiu uma escolha banalmente política”, afirmou Bayrou.

Esta discussão ideológica com consequências fratricidas reclama a convocação de um congresso – e, de facto, segundo os estatutos do PS francês, o próximo devia realizar-se o mais tardar até 6 de Novembro. No entanto, só para o mês que vem deverá ser convocado, e poderá então realizar-se em 2015 ou mesmo em 2016. “Mas a tectónica de placas socialistas está a mover-se”, afirmou ao Le Monde o professor de ciência política Rémi Lefebvre, especialista na vida interna do PS francês.

“Todos no PS pensam que as presidenciais [de 2017] estão perdidas. A questão é já o que será o pós-Hollande. O PS entrou claramente na fase de congresso”, disse Lefebvre. Se isto significa que o partido está ameaçado de cisão – para um lado a ala esquerda, para o outro os que estão com Valls, e que poriam o “socialismo” de lado –, bom, o próximo congresso deverá ser “impressionante”, diz o politólogo. “Mas o dado novo é desvitalização do partido. Iniciada com as eleições municipais, vai acentuar-se nas cantonais e nas regionais”, de Dezembro de 2015.

Mas historicamente, diz, “é quando parece não restar mais nada no partido que o PS se reconstrói”.

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