O pesadelo de Yarmouk caiu para os “níveis mais baixos da desumanidade”

A ONU exige a entrada de missões humanitárias em Yarmouk, que caiu na semana passada para o controlo do autoproclamado Estado Islâmico. Sem comida ou água potável, o campo de refugiados palestinianos está cada vez mais isolado.

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O campo de refugiados tinha cerca de 170 mil habitantes antes da guerra, mas dezenas de milhares fugiram Youssef Karwashan/AFP

Desde que, há uma semana, o autoproclamado Estado Islâmico invadiu Yarmouk e se colocou a apenas seis quilómetros do centro de Damasco que a situação da população palestiniana no campo de refugiados se tornou “mais desesperada do que nunca”. A ONU não sabe ao certo qual é a área do território actualmente sob o controlo dos jihadistas, nem quantos grupos armados combatem nas ruas, mas sabe que há milhares de palestinianos presos em suas casas a morrerem à fome e sem acesso a água potável ou medicamentos.

O Conselho de Segurança da ONU exigiu nesta terça-feira que fosse concedida a entrada de missões humanitárias em Yarmouk “para a protecção de civis” e que se conceda “passagem segura para a retirada [dos habitantes]”. Foi a resposta à reunião de emergência de segunda-feira com Pierre Krähenbühl, o comissário-geral da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA), que afirma que se vive em Yarmouk “uma situação completamente catastrófica em termos humanos”.

Yarmouk está severamente cercado há quase dois anos pelo exército de Bashar al-Assad. Desde então que a única entrada de alimentos e água tem sido feita através das missões da ONU na localidade, intermitentes e sem capacidade para responder às necessidades dos cerca de 18 mil palestinianos, entre os quais 3500 crianças. Agora, com a entrada em cena do Estado Islâmico e a escalada nos combates e bombardeamentos, tornou-se impossível levar ajuda à população no campo. “É simplesmente demasiado perigoso entrar em Yarmouk”, disse na segunda-feira Krähenbühl numa conferência de imprensa.

Antes da guerra, Yarmouk era uma das zonas mais populosas de Damasco, onde chegaram a viver cerca de 170 mil refugiados palestinianos. Dezenas de milhares fugiram à medida que o conflito evoluiu e que a zona se tornou numa das mais importantes frentes de combate entre o regime sírio e os grupos de oposição, onde se incluem os islamistas da Frente al-Nusra, a filial síria da Al-Qaeda e, agora, o autoproclamado Estado Islâmico.

Não se conhece ao certo o número de palestinianos que neste momento ainda se encontram em Yarmouk. De acordo com a agência de notícias síria, 2000 pessoas conseguiram fugir do campo desde que o EI entrou pelo flanco sul. A ONU não confirma este número e limita-se a dizer que poucas centenas conseguiram sair do campo ao longo dos últimos dias, estando o número oficial de residentes ainda perto dos 18 mil.

A população de Yarmouk tem sobrevivido com uma média de 400 calorias por dia, menos de um quarto do que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde, afirmou Pierre Krähenbühl. Desde que se iniciou o cerco a Yarmouk que já morreram pelo menos 200 palestinianos à fome. E esta é uma situação que vai piorar, agora que o autoproclamado Estado Islâmico se apoderou de grande parte do terreno – 90%, de acordo com os relatos que surgem do campo – e que a assistência humanitária está impedida de entrar no campo.

Al-Nusra e Estado Islâmico
Nunca o EI esteve tão perto de Damasco. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, com sede em Londres, o Governo sírio respondeu à entrada dos jihadistas com dezenas de bombas-barris, que explodem com estilhaços e munições no interior. Até ao momento, diz o Observatório, já caíram 25 destas bombas no campo de Yarmouk. Por causa da escalada nos conflitos, os refugiados palestinianos estão praticamente isolados em casa, como explicou na segunda-feira Christopher Gunness, da UNRWA. “A situação em Yarmouk desceu aos mais baixos níveis da desumanidade”, disse ao New York Times.

A surpreendente chegada do EI aos arredores de Damasco obrigou Bashar al-Assad a fortificar as suas posições militares em torno da capital e deixou ao Governo sírio um novo cenário a equacionar: a possível aliança da Frente al-Nusra, aliados da Al-Qaeda, e dos jihadistas do autoproclamado Estado Islâmico. Os dois grupos islamistas sempre se opuseram desde o início do conflito sírio.

Os relatos que surgem do terreno avançam que os dois grupos têm combatido em conjunto contra os rebeldes em Yarmouk. O Governo sírio diz que foi a filial da Al-Qaeda quem facilitou a entrada do Estado Islâmico em Yarmouk, na tentativa de sabotar um eventual processo de cessar-fogo com algumas milícias armadas em troca do levantamento parcial do cerco ao campo. Mas a al-Nusra nega uma aliança com o EI e afirma que mantém a sua postura de "neutralidade" face aos confrontos no campo de refugiados palestinianos. Algo que as imagens publicadas pelo grupo armado nas redes sociais parecem desmentir, como avança o jornal The Guardian.

Existe uma complexa rede de grupos armados a lutarem nos arredores de Damasco e nas imediações do campo Yarmouk, contra e a favor do regime de Assad. A guerra civil também dividiu os grupos palestinianos em Yarmouk, com uns a favor do regime sírio e outros contra. Alguns têm entrado em confronto com o Estado Islâmico desde que este chegou ao campo de refugiados, no dia 1 de Abril.   

De acordo com Guardian, o EI tem à volta de 300 combatentes em Yarmouk. O grupo jihadista assume-se como a força libertadora do campo e a solução para a fome e sede provocada pelo isolamento do cerco. Mas os palestinianos que conseguiram fugir para Damasco, pelo Norte e com a ajuda de milícias pró-governamentais, contam uma história diferente. Um sobrevivente contou à Al Jazeera que os habitantes do campo não saem de casa com medo do EI e repetiu para as câmaras da televisão a ameaça dos jihadistas à população, à chegada a Yarmouk: “Se encontrarmos algum de vocês a ajudar o Aknaf [Beit al-Maqdis] ou o Governo, cortamos-vos as cabeças”.
 

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