O périplo de Merkel

A chanceler aprendeu que os desafios que vai encontrar se quiser um quarto mandato são muito mais difíceis do que simplesmente impor disciplina financeira aos países do Sul da Europa.

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1. Não vale a pena preocuparmo-nos muito com o novo “directório” que se apresentou na semana passada no deck de um porta-aviões italiano. Matteo Renzi convidou Angela Merkel e François Hollande para uma “minicimeira informal” com a intenção de mostrar que existe Europa para lá do Brexit e que a Itália está preparada para desempenhar o seu papel de “grande” europeu, deixado vago pelo Reino Unido. O líder italiano escolheu cuidadosamente o cenário. Primeiro, a pequena ilha rochosa onde estiveram presos durante a II Guerra alguns resistentes italianos que, talvez por isso mesmo, imaginaram a melhor forma de acabar com as trágicas “guerras civis” europeias, entre os quais Altiero Spinelli. Mas também um dos dois porta-aviões italianos, o Garibaldi, usado como símbolo de uma Europa que quer pôr a segurança no topo da sua agenda política. O porta-aviões italiano teve um papel muito importante como âncora das operações de salvamento da Marinha italiana (e posteriormente europeia) nos últimos anos, uma missão que Roma cumpriu exemplarmente, mesmo quando não era apoiada por ninguém. Não significa, no entanto, que os três líderes tenham qualquer plano para uma defesa europeia no sentido hard da palavra. Berlim e Paris estão completamente em desacordo sobre a matéria, mesmo que a chanceler tenha percebido que o seu país vai ter de fazer muito mais nessa dimensão. A questão é de enquadramento: na NATO ou fora da NATO. Não se espera que, nas actuais circunstâncias, a chanceler tenha qualquer vontade de afectar a aliança transatlântica. A Itália sempre foi uma base sólida da presença dos Estados Unidos. Hollande, depois de ser ter afirmado como um aliado fiel de Obama no Mediterrâneo e no Médio Oriente, entrou na fase do vale tudo para ganhar votos, voltando a tocar a melodia do antiamericanismo de que os franceses tanto gostam, animado pela saída do cavalo de Tróia britânico. Entre os porta-aviões, os refugiados, o terrorismo e as preocupações de Renzi com o crescimento da economia, não há grande substância no resultado desta minicimeira. Renzi joga o seu futuro (e o do seu país) num referendo no Outono para aprovar uma reforma constitucional essencial para desbloquear o sistema político italiano, acabando com um regime parlamentar em que a Câmara Baixa e o Senado têm praticamente as mesmas funções e os mesmos poderes, transformando qualquer decisão legislativa num verdadeiro inferno. Na conferência de imprensa a bordo do Garibaldi, a promessa de “mais Europa” ou “mais integração” (Merkel prefere dizer prudentemente “melhor”) já foi levada pelo vento. Basta pensar que hoje, na maioria dos países europeus, a vontade de mais integração é mais ou menos nula.

2. Para Merkel, este encontro foi apenas um dos muitos que está a realizar com os seus parceiros europeus de forma a tentar minorar da melhor forma possível os danos políticos, económicos e estratégicos que o Brexit traz à Europa e encontrar um caminho aceitável para o futuro. Já esteve com os parceiros de Leste; está neste fim-de-semana com os parceiros do Norte (Finlândia, Holanda, Suécia e Dinamarca) onde as preocupações são outras. A neutralidade da Suécia e da Finlândia já deixou de fazer sentido porque desapareceu um dos blocos em confronto, mas ainda está muito enraizada na população dos dois países, desaconselhando uma entrada imediata para a NATO. O problema é que a Rússia, com a qual a Finlândia tem uma longa fronteira, se transformou numa ameaça imprevisível. Seria mais fácil para os dois países uma “defesa europeia” separada da NATO e dos EUA? Dificilmente. Basta olhar para Helsínquia onde o Governo decidiu negociar um tratado de defesa com os Estados Unidos, que quer concluir antes de Obama sair da Casa Branca. O ministro da Defesa (porventura para não dar pretextos a Moscovo) esclareceu que não há nesse tratado um Artigo 5.º ao estilo da Aliança. Mas não é preciso pensar muito para perceber que os finlandeses estão a jogar pelo seguro. A invasão da Ucrânia alterou profundamente a situação de segurança europeia. Putin criou um conflito que não tenciona resolver. Congela-o ou descongela-o de acordo com a sua nova estratégia de intimidação.

3. Voltando a Merkel, a sua agenda europeia é vasta. Está preocupada com o novo governo polaco, que regressou a uma linguagem virulenta contra a Rússia, mas lhe acrescentou uma linguagem muito pouco amiga da Alemanha. A chanceler passou muito tempo a tentar estabelecer uma boa relação com a Polónia, que agora teme ver destruída. Na Hungria, a Europa está confrontada com um problema ainda mais complexo: Viktor Órban (um pró-ocidental e thatcherista convicto quando da queda do Muro) está a construir aquilo que ele próprio designa por “democracia iliberal” (ou seja, sem imprensa livre e sem tribunais independentes) e a fazer de Putin um novo amigo, como de resto fazem os movimentos nacionalistas que grassam na Europa Ocidental. A tudo isto soma-se uma crise dos refugiados ainda muito longe de estar resolvida, em que a Europa se dividiu profundamente e em que Merkel (com a Itália, Grécia, Suécia e Portugal) tomou uma posição corajosa e generosa, muito impopular no seu país, mas cujas fundamentos ainda não rejeitou.

Agora, a sua maior preocupação é o Brexit, que, ao contrário de outros grandes países, ela leva muito a sério. Ainda ontem o Financial Times chamava a atenção para as suas palavras em Varsóvia, avisando que o Brexit “não é apena um acontecimento qualquer”. “É uma quebra profunda na História da integração europeia e, por isso, é necessário encontrar uma resposta cuidadosa”. Mais uma vez, não tem "a culpa" de conseguir olhar para o Brexit de um ponto de vista estratégico. Amainou a pressa de alguns governos (o francês à cabeça) para iniciar negociações. Disse uma coisa óbvia mas que só ela é que diz: que o Reino Unido vai ter de manter uma ligação especial com a União. Ou seja, não estamos a falar da Noruega, do Liechtenstein ou da Suíça. Fá-lo por interesse próprio, evidentemente. O mercado britânico é um dos principais destinos das exportações alemãs topo de gama. Mas também porque a posição da Alemanha numa Europa sem o Reino Unido é mais facilmente sentida como excessiva. A chanceler aprendeu nos últimos tempos que os desafios que vai encontrar se quiser um quarto mandato são muito mais difíceis do que simplesmente impor disciplina financeira aos países do Sul da Europa. E também sabe que não pode contar muito com Hollande, que já só tem um pensamento: passar à segunda volta nas presidenciais de Abril. A triste história do burkini é apenas um sintoma de total desorientação dos socialistas e do seu Governo e uma lamentável tentativa de se mostrar tão firme como a direita contra a comunidade muçulmana, num ambiente em que o terrorismo alimenta toda a espécie de medos. Se isto já é mau, as presidenciais de 2017 demonstram que a França não consegue renovar-se politicamente. O regresso de Sarkozy à ribalta ou a emergência dos dois mesmíssimos candidatos da esquerda radical de há cinco ano, Arnauld de Montebourg e Jean-Luc Mélenchon, mostra que a renovação da esquerda francesa (e também da direita) não está para já. Esperemos por Bratislava mas não esperemos grandes visões.

Jornalista

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