O novo Prometeu agrilhoado ou a tragédia europeia na Grécia

O sucesso dos programas de resgate é uma perfeita falácia, nomeadamente na Grécia, onde os efeitos sociais e económicos foram devastadores.

Na sua edição de 25 de Junho último e para ilustrar um artigo de Jürgen Habermas, “A escandalosa política grega da Europa”, o Le Monde produziu uma imagem muito pertinente para representar o impasse na relação da União Europeia (EU) com a Grécia.

Com a bandeira da UE em fundo, a imagem apresenta o novo Prometeu acorrentado, subentende-se que este seja agora a Grécia liderada pelo Syriza e pelo seu parceiro de coligação, no penhasco da Europa e com a águia a fustigar-lhe o fígado mas, desta feita e ao contrário do mito original, usando para o efeito não o seu bico mas um símbolo da moeda única. É uma imagem poderosa porque não só liga o velho mito grego, estruturante da tradição político-cultural ocidental, à situação atual, como tal mito é também pertinente para se entender metaforicamente a situação atual.

Para aqueles que, porventura, tenham menos presente o mito original, passado a trilogia dramatúrgica por Esquilo, vale a pena recordá-lo em traços largos. Prometeu era um titã da “corte” do deus supremo do Olimpo, Zeus, o qual se teria afastado deste último, despertando com esse afastamento a sua cólera, primeiro supostamente criando os humanos, segundo fornecendo-lhes o fogo libertador da cultura e da ciência. Como punição, Zeus decidiu que (o imortal) Prometeu ficaria (eternamente) agrilhoado, dependurado num penhasco, onde as aves de rapina reiteradamente lhe delapidariam o fígado (o qual, dada a sua imortalidade, se iria sistematicamente refazendo).

De facto, podemos entender a situação atual como um “castigo” do establishment europeu, uma intransigência dos restantes 18 governos da zona euro, perante a dupla rebelião da Grécia face ao status quo europeu. Por um lado, contra o “colete-de-forças” do euro e dos tratados económicos e fiscais (tratado orçamental, etc.), maxime contra os tristemente célebres “resgates financeiros”, que impedem que os eleitores possam mudar de políticas mesmo quando mudam de governos e lhes conferem claros mandatos de mudança. Por outro lado, contra a deriva tecnocrática da UE em que não só autoridades não eleitas são tidas em pé de igualdade com governos com mandato democrático, amiúde constrangendo a margem de manobra das autoridades democráticas e impondo uma austeridade sem fim e sem alternativa, como o leque de alternativas políticas, consubstanciais de uma qualquer democracia digna desse nome, é severamente limitado. Vejamos porquê.

Comecemos pelos problemas de democracia na UE. É chocante ver, mais uma vez nesta crise, o grau em que autoridades não eleitas (desde as mais tecnocráticas, como o FMI e o BCE, até às mais políticas, como a Comissão Europeia), ou seja, sem legitimidade democrática, pretendem determinar as condições de governação dos governos nacionais, esses sim com legitimidade democrática resultante do voto popular. Entre parêntesis, e para os mais incautos, esclareça-se que também o executivo da UE não é eleito popularmente, nem sequer de forma indireta, e a solução (desde o Tratado de Lisboa) de ligar as eleições para o Parlamento Europeu (PE) à escolha do Presidente da Comissão Europeia (CE), embora sempre mediada pela designação prévia feita pelo Conselho Europeu, é uma solução que vai no bom sentido, mas é tudo menos clara (aos olhos dos eleitores), inequívoca e necessária (vejam-se as controvérsias geradas aquando da última eleição do PE, 2014).

Alguns poderão argumentar que, tendo em conta os “resgates financeiros”, ou seja, os “empréstimos” à Grécia, é natural que os representantes dos credores tenham uma palavra a dizer nas políticas a adotar pelos devedores, nomeadamente com vista ao ressarcimento dos empréstimos. Todavia, esta posição tem dois problemas fundamentais. Primeiro, mesmo dando de barato tal argumento, sobretudo no âmbito europeu nada obriga a que sejam entidades tecnocráticas e não políticas a representar os credores; pelo contrário, num sistema político democrático (nacional ou supranacional), o oposto seria desejável. O segundo problema é que, independentemente de tudo o resto, aquilo que deveria preocupar os credores deveria ser apenas e só o ressarcimento efetivo das dívidas (realmente pagáveis), não as políticas a encetar com vista a tal ressarcimento.

Ora são precisamente as políticas que mais parecem preocupar os credores: recorde-se que uma das razões para a recusa da última proposta da Grécia foi que as entidades tecnocráticas (FMI, BCE, CE) não quiseram trocar cortes nas pensões e aumentos no IVA por cortes na Defesa e aumento das taxas em sede de IRC. Ou seja, mais do que preocupadas com o ressarcimento efetivo das dívidas, os credores parecem apostados em afunilar ideologicamente a latitude das políticas. Aliás, foi assim também no caso português: a Troika foi muito diligente a “obrigar” o governo português a privatizar extensamente, a comprimir o setor público ou a desregular o mercado de trabalho; mas contemporizou totalmente com o grosseiro incumprimento (do memorando) nos cortes das rendas nas utilities (por exemplo, dos grandes monopólios privados na área da energia) ou nas Parcerias Público-Privadas. E, sublinhe-se, o afunilamento do espaço de competição política é o pão nosso de cada dia na UE: por exemplo, em nome da sagrada concorrência mercantil impedem-se ajudas às empresas, vulgo a política industrial típica das democracias do após II Guerra, e subalterniza-se o funcionamento dos serviços públicos.

Note-se que tudo isto é anterior à crise grega atual, mas esta ficou desde o início marcada pela oposição ostensiva da CE e das grandes potências hegemónicas europeias à (então) esperada vitória do Syriza e, uma vez eleito o governo deste partido (por livre escolha dos cidadãos gregos, contra ventos e marés da Europa…), na tentativa de evitar a todo o custo que a mudança de governo desse origem a uma mudança de políticas. Ou seja, a mensagem do establishment europeu é, primeiro, não devem escolher forças políticas não certificadas por nós mas, se porventura o fizerem, devem ficar cientes que podem votar, podem até mudar de equipa governativa, mas não podem mudar de políticas. Ou seja, podem votar mas não podem escolher. Ora é contra esta “democracia sem escolhas” que o novo Prometeu agrilhoado se tem rebelado. E tal rebelião deveria motivar a solidariedade de todos os democratas europeus, nomeadamente dos socialistas, os mais prejudicados com o afunilamento do espaço das políticas que mencionámos…

Como sublinha Habermas no seu artigo citado acima, uma das reivindicações da Grécia era uma renegociação da dívida pelo menos de modo a indexar o seu pagamento ao crescimento económico futuro do país. Os “credores”, os seus representantes tecnocráticos e, de um modo geral, o establishment político e mediático europeu chamaram a isto “radicalismo intransigente”. Mas será a divida grega pagável? E terão sido os programas de resgate um sucesso em todo o lado, exceto na Grécia? Mais uma vez, conforme refere o filósofo alemão é cada vez mais consensual entre a comunidade científica que, primeiro, será necessária uma renegociação das dívidas das periferias em crise, nomeadamente da grega; segundo, que os programas de resgate assentaram num erro de diagnóstico quanto à genealogia da crise; terceiro, que o sucesso dos programas de resgate é uma perfeita falácia, nomeadamente na Grécia, onde os efeitos sociais e económicos foram devastadores.

Claro que há uma imensa operação de propaganda por essa Europa fora a dizer que tais programas foram um sucesso, nomeadamente em Portugal, mas quando explico aos meus amigos alemães que, no final do programa, com enorme compressão de salários e de pensões, com brutal desregulação do mercado de trabalho e descapitalização dos serviços públicos, com extensíssimos programas de privatizações, Portugal está hoje muito mais endividado do que antes do memorando da Troika, as pessoas percebem claramente a falácia… Ora foi contra estas falácias que o novo Prometeu agrilhoado se rebelou. E, mais uma vez, tal rebelião deveria motivar a solidariedade de todos os democratas europeus, nomeadamente dos socialistas. Assim não tem acontecido, porém, curiosamente…

Nota final: estes e outros assuntos são abordados no livro coletivo que coordenei, O Futuro da Representação Política Democrática, Lisboa, Nova Vega, e que será lançado hoje no ISCTE-IUL, Auditório J. J. Laginha, com apresentação de Maria Flor Pedroso, Paulo Trigo Pereira e Viriato Soromenho Marques. Entrada livre.  

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL; andre.freire@meo.pt

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