O “nosso mar” é um cemitério

Em 2015, contam-se 900 mortos num período em que no ano anterior tinham sido 17. Até agora, este ano, já serão mais de 1600 os afogados.

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Todos os dias são resgatadas 500 a 1000 pessoas Giovanni Isolino/AFP

Como em 2013, a expressão "nunca mais" volta a ser repetida. Como em 2013, quando morreram mais de 360 pessoas ao largo de Lampedusa, espera-se que algo seja feito, depressa, para minimizar o drama quotidiano das mortes no Mediterrâneo, a fronteira em paz onde mais se morre no mundo. O problema é que o que foi feito em 2013, a missão de resgate e salvamento Mare Nostrum, só durou até Outubro de 2014, quando a Itália pôs ponto final a operações que envolviam gastos de 9 milhões de euros por mês e que os parceiros europeus recusavam partilhar.

Depois deste domingo, dia em que perto de 700 migrantes se terão afogado no “Nosso Mar”, já terão sido ultrapassado os 1600 mortos em 2015. “São 15 por dia. Quantos mais serão precisos para a União Europeia agir?”, perguntou, no Twitter, Judith Sunderland, investigadora da ONG Human Rights Watch.

Se quisermos comparar o que já aconteceu este ano – e ainda não chegámos à época em que os ventos abrandam, o tempo melhora e as partidas se multiplicam – podemos lembrar que num mesmo período de 2014 em que se verificaram 17 mortos, em 2015 se contabilizaram 900. Isto porque, quando a Mare Nostrum chegou ao fim, foi substituída, a 1 de Novembro, por uma missão mais pequena (Triton), que envolve dez países, custa 2,9 milhões de euros por mês e funciona no quadro da Frontex, a agência europeia de vigilância de fronteiras, com 21 embarcações que patrulham até 48 quilómetros da costa italiana (o último naufrágio aconteceu a 220 km).

Um dos motivos invocados para não apoiar a Mare Nostrum, nomeadamente pelo Governo de Londres, é a ideia de que uma operação que salva vidas encoraja o aumento da imigração. Algo que só quem não vê para lá das suas próprias fronteiras pode defender.

As explicações para o êxodo do Médio Oriente, Norte de África ou África Subsariana são várias, do caos líbio, à guerra síria, passando pela fome ou pela seca. Também há as alianças dos países ocidentais com líderes como Sissi, no Egipto, que expulsa os sírios e os palestinianos que para ali tinham fugido. Ou o financiamento por parte do Banco Mundial de projectos como barragens, ocupação de terras e privatizações realizados por governos acusados de assassínio que nos últimos cinco anos “deslocaram 3,4 milhões de pessoas” (trabalho da semana passado do International Consortium of Investigative Journalism).

As causas são muitas e todas demorariam muito a minorar. Daí que Sunderland se tenha irritado ao ler o comunicado de Bruxelas que defende “ir às raízes do problema”. “Com 700 mortos, a Comissão Europeia ainda fala em enfrentar as causas e não em melhorar as buscas e salvamentos.”

O Mediterrâneo, disse na sexta-feira o primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, a Barack Obama, “é um mar, não um cemitério”, enquanto lhe pedia ajuda. Obama explicou que as suas prioridades passam por combater os jihadistas no Iraque e na Síria e estabilizar a Líbia, o que levará tempo.

“Aquilo a que assistimos no Mediterrâneo é uma tragédia provocada pelo homem, de proporções perturbantes. Estas últimas mortes no mar podem ser um choque, mas não são uma surpresa”, diz John Dalhuisen, director da Amnistia Internacional para a Europa e a Ásia Central. “Os navios da marinha mercante e as suas tripulações têm tentado preencher, de forma corajosa, os buracos deixados pela falta crónica de equipas especializadas, mas não foram construídos nem estão treinados para resgates marítimos. Chegou a altura de os governos europeus enfrentarem as suas responsabilidades.”

Alguns líderes disseram frases parecidas, os da Itália, Espanha ou França. “Dissemos várias vezes ‘nunca mais’. Temos de salvar vidas humanas juntos”, afirmou Federica Mogherini, responsável pela Política Externa da UE. François Hollande pediu uma reunião de emergência e sabe-se que um encontro acontecerá em breve em Bruxelas, mas nenhuma data foi avançada. Entretanto, todos os dias 500 a mil pessoas vão continuar a ser (espera-se) resgatadas pela guarda-costeira italiana ou por navios comerciais. É difícil ouvir este “nunca mais” e acreditar na sua urgência.

“Se realmente queremos garantir que há menos mortes, então o que temos de fazer é tentar fornecer rotas legais de entrada na Europa”, defende Laurens Jolles, representante em Roma do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. “Há uma obrigação, moral e legal, de tentar fazer qualquer coisa. As pessoas vão morrer.”

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