O momento belga do Reino Unido

O caso federal britânico mostra bem como andam enganados – e outrossim enganam – aqueles que diabolizam o conceito de federalismo.

1. A grande novidade do referendo escocês não foi a vitória do “não”, nem a demissão de Alex Salmond; não foi a forma exemplar como todo o processo político foi conduzido (apesar de algumas escaramuças póstumas), nem foi ainda a tardia vocação retórica de Gordon Brown. A novidade da consulta escocesa foi o anúncio de que o processo de “devolução de poderes” se iria estender aos restantes países do Reino Unido (Gales, Inglaterra e Irlanda do Norte). Não ficou minimamente claro em que termos e em que moldes; mas no início da manhã do dia 19 de Setembro foi gizada, pela voz do primeiro-ministro, uma das mais significativas reformas constitucionais da história do Reino Unido.

2. As incógnitas são muitas, mas uma coisa pode ser dada como quase certa: a constituição do Reino Unido deixará de consagrar um modelo de Estado unitário e adoptará a forma federal. O uso do adjectivo “Unido” e da noção constitucional de “União” deixará de ser simplesmente nominal e passará a ser efectivo. O estabelecimento de um sistema constitucional federal tem sido sublinhado por muitos analistas, mas subsiste uma grande nebulosa. Não se percebeu se vai ser organizada alguma consulta – do tipo da escocesa ou, por exemplo, de simples aprovação da reforma a propor – aos eleitorados dos três países restantes. Não se percebeu se, para lá de um parlamento e de um executivo parlamentarmente responsável em Gales e na Irlanda do Norte, vai criar-se um parlamento privativo da Inglaterra. E, portanto, não se percebeu se Westminster se vai tornar afinal num verdadeiro parlamento federal. Ou se, ao contrário, optar-se-á pela solução esdrúxula, que já vi aventada, de que os deputados “nacionais” eleitos por círculos ingleses gozariam do direito extra e exclusivo de votar nas matérias que afectassem a Inglaterra. Ou seja, o parlamento de Westminster incorporaria duas “formações”: uma alargada para discutir e votar os assuntos da competência do Reino Unido e outra restrita para debater e decidir os assuntos da Inglaterra. Seria decerto uma solução bizarra, que evoca as discussões europeias sobre se deve haver ou não um “parlamento restrito” para os “países do euro” (uma espécie de instância parlamentar correspondente ao “eurogrupo”). Os argumentos são, aliás, em tudo similares. Não deixa aliás de ser irónico que sejam os conservadores mais arreigados, geralmente eurocépticos, os mais acérrimos defensores da “autonomia” política e legislativa (quiçá “constituinte”) da Inglaterra enquanto país.

As dúvidas e as perguntas não se quedam por aqui. Há até quem, alegando que o fosso britânico é maior entre a região de Londres e todas as outras regiões (incluindo as de Inglaterra) do que entre as quatro nações entre si, sustente que se deveria criar uma região de “Londres-capital” (um pouco à semelhança da região belga de Bruxelas-capital). Esse bantustão londrino, diz-se, teria também o seu parlamento e o seu executivo e, devidamente contido, permitiria minorar as assimetrias com o resto do Reino…

Bem mais importante, está longe de ser consensual que ordem de matérias há-de ser devolvida aos parlamentos dos quatro países e que assuntos vão permanecer na mão de Westminster, enquanto parlamento federal. E, o que não é despiciendo e não decorre das palavras de Cameron, se os quatro países terão exactamente o mesmo estatuto (isomorfismo federal) ou se acabarão por ter poderes e competências diferenciados (federalismo assimétrico – que imitaria o actual figurino espanhol). Continua, ademais, sem se saber quem e com que fórmula constitucional avançará com esta proposta. Pode mesmo questionar-se se, atendendo ao nível de detalhe exigido, o célebre (mas não rigoroso) carácter não escrito, costumeiro e convencional da constituição britânica não estará em jogo. Na verdade, é provável que a regulação constitucional necessária para dar corpo a esta mudança imponha a adopção de um instrumento escrito, que tenderá a reger directamente toda a matéria política.

3. É importante notar que este processo constitucional britânico exibe um grande paralelismo com o processo belga que começou a ganhar densidade nos anos 70 e acabou por se materializar na reforma de 1993 e na constituição federal de 1994. Também aí se fez o percurso que foi do Estado Unitário ao Estado Federal, instaurando-se aquilo a que se chamou um federalismo por desagregação ou por “dissolução” (Alessandro Truini). E que, de resto, tem semelhanças com o processo espanhol, embora aí estejamos diante de um federalismo efectivo (não expressamente assumido na constituição) e assimétrico. O caso belga e espanhol representam o movimento inverso do que foi prosseguido pelos Estados Unidos ou pela Suíça, em que vários Estados independentes e soberanos se agregaram, primeiro, numa Confederação e, pouco mais tarde, numa federação autêntica (são as chamadas “federações perfeitas”). É o que Alfred Stepan denomina o modelo “holding together” (belga, espanhol e britânico) por contraposição ao modelo “coming together” (norte-americano e helvético). O modelo “holding together”, como indica o próprio nome, visa isso mesmo: evitar a secessão e a separação.

4. O caso federal britânico mostra bem como andam enganados – e outrossim enganam – aqueles que diabolizam o conceito de federalismo e vêem nele um poderoso instrumento para reforçar o centralismo. O federalismo foi sempre – ao menos, em democracia – um modelo constitucional e uma doutrina política de divisão e separação dos poderes; não de concentração, não de centralização. Uma parte relevante do debate europeu está inquinada por este desconhecimento (por vezes, intencional) da natureza e do sentido do federalismo. A palavra, o conceito e a realidade têm sido tão vilipendiados e tão levianamente tratados que Habermas, usando da ironia, pôde escrever: “a pa­la­vra 'Fe­de­ra­lismo' é, em si mesma, escandalosa.”

 

SIM. Francisca Carneiro Fernandes. A persistência e o talento da gestora cultural, herdeira de Ricardo Pais, deram e têm dado frutos no Teatro Nacional de S. João, agora devolvido ao Porto e ao país.

NÃO. Caos diluviano em Lisboa. Mesmo sem dilúvios, de cada vez que há chuva intensa em Lisboa, instala-se o caos. Que fizeram, neste particular, a autarquia e o seu presidente ao cabo de tantos anos de mandato?

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