O “massacre de Mueda” ainda anima o planalto dos Macondes

Há 54 anos as forças de segurança do governador de Mueda, no Norte de Moçambique, dispararam sobre a população civil fazendo um número nunca apurado de mortos. O episódio, um dos mais brutais da fase final do Portugal colonial, continua a servir de emblema mitológico da Frelimo. Para os cidadãos do planalto, é um bom dia para ver a tribo das cidades e para lutar por uma camisola oferecida pelo partido.

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Manuel Roberto
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Elisabeth Mkamuchivi estava lá, nesse dia 16 de Junho de 1960, algures entre a multidão que se concentrou em frente do posto administrativo de Mueda, no coração do planalto dos Macondes, Norte de Moçambique. Não se lembra quantos anos tinha, aliás nem agora sabe de cor quantos anos tem, mas recorda-se de detalhes que lhe permitem destacar entre os milhares de camponeses que vieram de Awasse, de Montepuez ou de Mocímboa da Praia o rosto do chefe da circunscrição administrativa do governo colonial ou o momento em que os cipaios, as forças de segurança, começaram a disparar sobre a multidão.

Esta semana, 54 anos depois do que os moçambicanos designam de “massacre de Mueda” foi uma vez mais comemorado e Elisabeth estava lá, de novo, como sempre fez desde que Moçambique é independente, algures entre a multidão que dava vivas a autoridades locais ou às que vieram de Pemba, capital da província de cabo Delgado, ou até de Maputo.

Para os moçambicanos que integraram o movimento de libertação lançado pela Frelimo, o acontecimento de Mueda onde, de acordo com as fontes próximas dos dois lados da barricada provocou 17 ou 600 mortos entre a população civil, é o marco zero do caminho que levou à independência. Os camponeses queriam melhores salários ou melhores preços, mas também houve quem quisesse juntar toda a etnia maconde sob a égide da Tanzânia. A causa da luta armada precisava de uma data solene para legitimar a sua existência e as autoridades coloniais inventaram-na com tanta crueza que ainda hoje perdura. Em Mueda, na passada segunda-feira, as palavras de ordem valem menos do que as t-shirts que a Frelimo distribuía a eito entre a população, mas, para os dirigentes nacionais do partido do Governo, comemorar esse dia longínquo em que se percebeu que o regime colonial estava disposto a conservar o poder com mão-de-ferro continua a ser sinónimo de fidelidade aos princípios da libertação.

Ao mesmo tempo que, em cima de um palco instalado num parque do bairro Maputo, o governador da província, Abdul Razak, fez uma pausa no seu discurso habitualmente tecnocrático e moderado e vituperou “o colonialismo português”, a maior parte das muitas centenas de pessoas que se abrigavam à sombra entretinha-se a olhar para a frente com indiferença. Razak, um homem alto, afável e bem mais hábil a falar de estratégias de desenvolvimento do que a apelar à emoção popular, acabou o seu discurso e o que se ouviu foram as palmas dos indefectíveis e o murmúrio indiferente da multidão. A invocação desse dia 16 de Junho de 1960, em que os moçambicanos “tomaram a consciência de que só com a luta se poderia destruir o colonialismo português”, de pouco lhe valeu para empolgar as crianças suspensas das árvores, os grupos de pessoas que estavam mais para ver do que ouvir, ou os vendedores de mangas ou laranjas entretidos a tirar-lhes as cascas e a espetar-lhes um pauzinho para serem comidas ao bom estilo do picolé.

Em Maputo, os jornais nacionais passaram ao lado de Mueda e a própria Mueda teria passado ao lado da comemoração do seu massacre se o candidato presidencial da Frelimo Filipe Nyusi não fosse até ao planalto dos Macondes dar-lhe aparato e brilho. Para os habitantes de Mueda, a 400 quilómetros da capital provincial Palma e o ponto exacto onde o alcatrão acaba e começam as estradas poeirentas que a ligam a Montepuez, 230 quilómetros a sul, ou a Negomano, já na fronteira com a Tanzânia e as vastidões do Niassa, a comemoração do dia em que as autoridades coloniais dispararam a sangue frio sobre camponeses indefesos foi antes de mais uma oportunidade de ver o mundo chegar a si. Muitos vestiram os seus melhores trajos, algumas crianças tinham o ar de quem ia à comunhão solene, embora o pó arrastado pelos passos da multidão acabasse por arruinar cedo toda a veleidade dos guarda-roupas.

Logo pela manhã, aproveitando o ar fresco que sopra pelo planalto, centenas de pessoas caminharam até ao lugar onde outrora existiu um campo de aviação do exército colonial – as guaritas do quartel anexo ainda espreitam entre o mato que as vai engolindo inexoravelmente. Era aí que se preparava para aterrar Filipe Nyusi, um filho dilecto de Mueda. A organizar a multidão estava a tropa, com alguns soldados de bengalim, outros, mais recuados, de metralhadora amparada junto à cintura. À primeira vista, a sua missão parecia impossível. Afinal, a sua função era criar condições de segurança para que o pequeno avião a jacto que transportou Nyusi desde Pemba pudesse aterrar e poucos minutos antes a irregularidade da primeira linha de pessoas fazia antever a exigência de uma aterragem às curvas. Puro engano. Um oficial, de voz alta e dura, sentenciou: “Têm todos que se chegar para trás porque vem aí um avião a jacto que faz mais pressão”. Dito e feito. Quase como que por magia, a fila adquiriu a feição da disciplina militar e, sem grande aparato, sem empurrões e ainda menos qualquer ameaça de violência da polícia, a fila recuou, a pista ficou livre, pouco depois o pequeno avião fez um sobrevoo de saudação e preparou-se para aterrar.

O avião imobilizou-se mesmo no início da linha que demarcava a multidão e, um a um, as figuras gradas da Frelimo ou das autoridades locais começaram a esticar as mangas do casaco e a dar o último retoque no colarinho. Nyusi, estatura média, ombros largos e andar ondulante estava no seu meio. Cumprimentou os altos dignatários, passou pelos militantes, pelos autarcas, deteve-se nos régulos firmes e hirtos nas suas fardas entre o amarelo e o castanho, bamboleou contido os ritmos do Mapiko, a dança tradicional dos Macondes, bateu palmas às crianças que lhe devotavam em canção a “alegria pela vinda do nosso titio” e, já no meio do povo, fez-se candidato. “Nyusi hoye, hoye” (viva), ao que ele respondia, “Frelimo hoye, Mueda hoye…”.

Claro que a festa de Mueda só poderia servir para a glorificação da luta e da Frelimo se houvesse solenidade, pelo que pouco depois uma coluna liderada por polícias abria espaço entre a multidão para se deslocar para o mausoléu dos heróis da pátria moçambicana. A multidão que estivera no aeródromo, corria agora para o centro da localidade ou procurava desesperadamente lugar na caixa de carga dos camiões. Ao lado da casa da administração colonial, um campo aberto com um monumento despojado onde na cúpula se via uma figura humana a quebrar uma corrente. Ao lado, os túmulos dos heróis: Matias Shibiliti, o organizador do protesto da Mueda que acabou por morrer na prisão, na Beira, Ernesto Ndupa, comandante da base de Nampula ou a guerrilheira Maria Chipande têm lá os seus restos mortais.

Bandeira nacional hasteada, cantou-se o hino nacional e o governador depositou uma coroa de flores na base do memorial das vítimas de Mueda. Filipe Nyusi seguiu-lhe os passos, sendo o primeiro de uma longa fila de homens e mulheres com flores na mão, entre os quais alguns sobreviventes do “massacre de Mueda” e guerrilheiros que, no final dos anos 60, deixaram as suas aldeias para se embrenharem no mato. Não se pode dizer que tenha sido uma homenagem emocionante – afinal já passou mais de meio século. Mas bastava ver a expressão do olhar dos homens e mulheres da Frelimo desses anos de guerra para se perceber que estavam ali a reviver talvez os momentos duros e sentidos das suas vidas.

Fez-se então mais uma corrida, mais uma viagem, agora para o lugar do comício no bairro Maputo. Mas aí, muito mais do que palavras de ordem proferidas pelos altos dignatários em português de lei e traduzidos acto contínuo para Maconde, o que contava era a sombra das mangueiras e o relax de um dia feriado. Acabados os discursos, a comitiva de Nyusi e do governador regressou aos seus carros todo-o-terreno, ficou uma boa hora em parte incerta e regressou a mais um comício na praça onde o “massacre de Mueda” aconteceu há 54 anos. Desta vez, porém, Elisabeth Mkamuchivi faltou ao encontro. Tinha preferido investir o seu tempo na procura de uma camisola de propaganda partidário na casa de um influente líder local do partido. Quando falou ao PÚBLICO, ainda não tinha conseguido o seu objectivo. Um pequeno drama para esta maconde do tempo em que as meninas eram tatuadas na cara. Um drama na sua aparência bem mais grave do que a comemoração de um dia que para ela pouco mais é do que recordação de juventude.

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