O Irão não é um piquenique

1. Chegam num autocarro mais velho do que todos eles, a maioria das raparigas em traje de festa nacional, a maioria dos rapazes à ocidental, elas supermaquilhadas, eles de gel, entre guerra fria e quente, ficar bonito é estar vivo, como no meio dos milhões em fuga ao “Estado Islâmico” haver meninas de mindinhos coloridos, brilho de verniz.

2. Eles não estão em fuga, vêm para um piquenique na fronteira, desembarcam do autocarro, as raparigas de mãos livres para agarrarem as saias, os rapazes de telemóvel na mão para a fotografia. Cruzamo-nos a meio da colina, eles a subir, eu a descer, mesmo em cima da fronteira, que aqui não tem nenhuma linha visível, um pé ainda no Iraque, o outro já no Irão, quem sabe em que momento da subida. Do ponto de vista deles, tudo terra curda, família dos dois lados da fronteira.

3. Vêm porque é quinta-feira, o que do ponto de vista curdo é já quase fim-de-semana; porque moram a uns meros cem quilómetros, em Suleymaniah, a segunda maior cidade do Curdistão Iraquiano; e porque aos pés desta colina há uma popular zona de piqueniques, com nascentes e árvores. Amanhã, sexta-feira, será a enchente, um piquenicão apesar de tudo o que não é natural ser cor de cimento e mal acabado, como nas aldeias, vilas e cidades iraquianas, em geral. Nesta aldeia já nada é antigo, destruíram as velhas casas de adobe, a guerra fez uma parte, os sobreviventes outra. Estamos na fronteira com o Irão, a oriente, e isso, do ponto de vista curdo, nunca será um piquenique. Além de que agora, a ocidente, há o “Estado Islâmico” a fundir Síria e Iraque num pesadelo só.

4. “As coisas não estão bem”, reconhece uma risonha, rechonchuda Naz, 20 anos, caloira da Universidade Americana de Suleymaniah. Neste grupo são todos estudantes, uns de comunicação, outros de construção, filhos de famílias abastadas, pelo menos o bastante para Naz pagar 4000 dólares anuais pela faculdade. Há dinheiro no Curdistão Iraquiano, negócios, petróleo, boom wannabe Dubai entretanto estagnado pela queda do petróleo, pelo congelamento dos salários que vêm de Bagdad, pela guerra que cerca as linhas curdas. Mas ninguém, criança, adolescente, em traje de festa ou maquilhado, dirá que tem medo. “Somos todos peshmergas”, dizem os estudantes quando lhes falo no “Estado Islâmico”. Peshmerga é como os curdos chamam aos seus combatentes. “Somos combatentes de caneta.” E, em caso de necessidade, não apenas. Por exemplo, o pai de Naz, que é peshmerga, e dentro de um mês voltará à linha da frente, ensinou-a a disparar uma kalashnikov. Toda a gente aqui tem armas em casa, treinou pontaria em piqueniques como este. De resto, têm 20 anos como quem tem 20 anos de La Paz a Vladivostok: a palavra Portugal não muda nada na cara deles, mas o nome Cristiano Ronaldo faz a festa. Em qualquer bazar, nas costas de qualquer miúdo, podemos ler Ronaldo 7.

5. Tawela é o nome da aldeia. Quer dizer “vale largo”, em curdo. Onde o vale acaba e começam as colinas está a separação entre Iraque e Irão. Quando chega a Primavera, os nómadas instalam-se na encosta, trazendo as vacas para que pastem. Assim era há séculos, e assim é, apesar de tudo, agora com plásticos azuis e parabólica: eis os aposentos de Wazira, compondo o seu lenço no começo da encosta. É uma mulher curtida por muito sol, 50 anos que parecem 70. Ela e o marido têm duas vacas e dois vitelos, que dormem num barraco comunitário aqui ao lado. De Inverno moram na aldeia, mas a cada Primavera mudam-se para aqui, até voltar a ficar frio. É o que ela conta enquanto o filho mais velho sobe pelas pedras com um saco na mão. Todos os dias vem trazer tomates e pepinos aos pais. Depois dele virão o tio e um vizinho, que também guarda as vacas no barraco comum. Aprenderam onde subir e não subir com o gado. “Ali e ali ainda está cheio de minas”, apontam. “Animais morreram e pessoas ficaram deficientes.” A guerra Irão-Iraque dos anos 80 continua a matar. “Aconteceu muitas vezes, muitas vezes.”

6. E esse inimigo novo que é o “Estado Islâmico”, ou ISIS, aqui conhecido como DAESH? Wazira soube deles no ano passado pela televisão, quando ainda estava na aldeia. Isto da parabólica na tenda nómada tem dias, costumavam passar a Primavera-Verão sem ver TV. “O DAESH está muito longe”, tranquiliza ela. “Estamos seguros aqui.” Nesta fronteira oriental, as cicatrizes do Irão continuam a ser mais fortes. “Se duas galinhas nossas lutarem, pode ter a certeza de que o Irão está por trás disso”, ironiza o agricultor vizinho. É o que toda a gente nas redondezas acha: que o Irão divide para reinar. “Nunca temos descanso. Os iranianos davam munições aos dois partidos curdos para que lutassem.” Lutaram como fratricidas, na guerra civil dos anos 90, e as marcas também se vêm até hoje: além de o Iraque estar partido entre árabes sunitas, árabes xiitas e curdos, o Curdistão está partido entre os seus dois partidos.

7. Antes de tudo isto, já foram 50 famílias, 50 tendas e pastagens comuns nestas encostas. Um espírito comunista compatível com a fé, segundo o vizinho de Wazira, que se declara comunista e muçulmano, porque os comunistas são aqueles que lutam pelos pobres.

8. Uma das filhas de Wazira casou com um curdo iraniano. Vão visitá-la a salto para não passarem maçadas no checkpoint fronteiriço. Quando me despeço de Wazira e vou lá, a esse último checkpoint antes do Irão, ondeando a grande altitude por curvas e contracurvas, os soldados na fronteira confirmam que sim, que a gente local passa a salto, eles fazem que não vêem. Pelo menos não há hora de fecho como aqui, onde quinta-feira já conta como fim-de-semana, e portanto o portão para o Irão está fechado a cadeado. É literalmente um portão, bandeira curda do lado de cá, bandeira iraniana do lado de lá. No Google Maps e na diplomacia internacional, é fronteira Irão-Iraque, mas nem sinal de bandeira iraquiana. Sim, o Iraque está partido em três, quatro contando com o “Estado Islâmico”, e Bagdad não manda aqui.

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DR

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