O inimigo do interior

A Europa do pós-guerra acabou e em grande parte por não sabermos defender os valores que nos são mais queridos.

Os atentados de Paris provocaram nos cidadãos europeus um choque profundo. É como se despertássemos de um sono profundo e nos víssemos face a uma realidade obliterada ou pelo menos tão longínqua que era como se não existisse. A bela Europa da arte e da cultura, dos direitos humanos, do acolhimento generoso, da livre circulação, dos bons sentimentos e da consciência tranquila, descobre da pior maneira a hidra que cresceu no seu seio e, pior do que tudo, que ela se alimentou dessa mansa autocomplacência. Tristeza e raiva, ódio e medo, ressentimento e revanchismo são alguns dos sentimentos que experimentamos neste momento. Mas acima de tudo incompreensão, estupefacção: como foi possível, como é possível? O que leva homens e mulheres, alguns quase adolescentes criados neste nosso mundo pacífico, a servirem a mais hedionda ideologia, a praticarem os actos mais bárbaros – e nenhum é pior, nem mais cobarde do que investir indiscriminadamente contra populações indefesas.

Muito tem sido dito para tentar responder a esta pergunta: fracasso da integração à francesa, guetos do desespero, túneis de vida sem esperança, ideologias de morte como tábuas de salvação, ódio à cultura liberal e a um ocidente arrogante, caos instalado nas ruínas do Iraque, da Síria e da Líbia por uma política ocidental incoerente, titubeante e sem norte…. Mas a verdade é que apesar de todas as explicações do mundo, nada consegue apagar essa interrogação, esta imensa perplexidade que se mantém, que permanece e nos corrói. Porquê?

Simplesmente, porque esta perplexidade está relacionada com o estado de negação em que dormita a Europa há décadas. Vivendo sob o escudo protector americano, num mundo que acreditámos idílico do pós-guerra fria, fundadores de um projecto de união dos povos europeus - amigos e em paz para todo o sempre - habituámo-nos a ver o mundo inteiro a nossa imagem. Claro que íamos lendo e vendo nos ecrãs as guerras da Bósnia, do Iraque, do Afeganistão, da Palestina, os atentados terroristas em Bombaim, Karachi, Bali, Beirute, Turquia… mas “longe da vista, longe do coração” nada disso nos dizia verdadeiramente respeito, nem ameaçava o nosso sossego, nem o nosso modo de vida, apenas levava alguns de nós a apiedarmo-nos das vítimas. É verdade que também assistimos aos atentados nos EUA, em Espanha ou Londres, mas ainda era cedo para percebemos o que estava em jogo e de alguma forma a culpa também era nossa, não é assim? Quanto aos atentados palestinianos, aí não havia dúvidas, a culpa era obviamente dos israelitas… E assim seguíamos tranquilamente com as nossas certezas.

Os recentes atentados de Paris já não permitem manter esta tranquilidade. Não apenas pela dimensão, nem pela hedionda escolha dos alvos. Mas a sua repetição bem-sucedida num curto espaço de tempo, conjugada com a frustração de outros tantos ao longo deste último ano, dá-nos a definição de uma realidade que temos de encarar bem de frente: a Europa que construímos no pós-guerra acabou. Estamos face a um inimigo organizado, imprevisível, dotado de uma ideologia de morte e de poder e dos meios mais sofisticados de propaganda. E acima de tudo, com uma massa inesgotável de recrutas no nosso próprio seio. Esta é a questão central à qual já não é possível fechar os olhos. O inimigo é invisível mas está entre nós nas margens das nossas sociedades, crescendo nas faixas radicalizadas das imensas comunidades muçulmanas, alimentado pela frustração e a incitação ao ódio, pela aspiração ao martírio e ao heroísmo, ou simplesmente pelas promessas de droga e mulheres escravas.

A Europa do pós-guerra acabou e em grande parte por não sabermos defender os valores que nos são mais queridos. Por pensarmos que são as cedências que resultam e não a firmeza. E por não darmos valor aos que os defendem. Ao longo dos anos a atitude europeia tem-se radicalizado contra Israel – país que partilha os mesmos valores que hoje são o alvo principal do terror - ao ponto de silenciar os atentados terroristas de que os seus habitantes são um alvo constante e permanente ao longo de décadas. Apenas nos últimos dois meses 23 cidadãos entre os 18 e os 78 anos foram mortos por esfaqueamento em Telavive, na Cisjordânia e em Beersheba, ou seja não apenas na Cisjordânia ocupada mas em cidades do centro de Israel. A imprensa que, de uma forma geral, noticia longamente (e bem) os atentados ocorridos não só na Europa como no resto do mundo tende a silenciar os que acontecem em Israel. Porque são “naturalmente” consequência da ocupação, subentende-se… Mas o que se subentende também nesta perspectiva é que há terroristas “maus” e terroristas “bons” ou pelo menos compreensíveis … apagando o facto de que atentar contra a vida de cidadãos indefesos, seja qual for a motivação dos seus autores, tem apenas um nome sem adjectivo: terrorismo. Talvez agora a Europa comece a compreender – da pior e mais dolorosa maneira - o que significa viver em permanência sob a ameaça do terror.

Especialista em assuntos judaicos

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