O grito da fronteira

É num qualquer posto fronteiriço que nos recordam que não somos bem-vindos, que não somos dali, que temos de justificar a nossa presença naquele lugar.

Sempre me intrigou a fronteira. Quando aguardamos, ansiosos, de passaporte na mão, a entrevista com um oficial de migrações num qualquer posto fronteiriço.

É aí que nos recordam que não somos bem-vindos, que não somos dali, que temos de justificar a nossa presença naquele lugar.

Se é assim no conforto do transporte aéreo, protegidos por um passaporte poderoso — não por acaso, têm-se repetido nos últimos tempos rankings dos passaportes mais poderosos: os que garantem a entrada num maior número de fronteiras —, imagine-se a sensação de alguém que salta para uma balsa em condições miseráveis e enfrenta a inclemência dos mares, rumo a uma fronteira desconhecida. Sem passaporte, sem papéis, sem telefones, sem nada. Apenas a vontade ou o desespero de procurar uma vida melhor ou de fugir à vida impossível.

Dantes, estes movimentos eram sazonais: os traficantes aguardavam a acalmia do Mediterrâneo para fazer a travessia. Agora nem a imprevisibilidade do tempo respeitam. As tragédias tornaram-se, por isso, cada vez mais frequentes.

O que leva alguém a decidir colocar-se nessa situação? A arriscar a vida e a morte da forma mais inclemente? Imagino que apenas o desespero o possa justificar, um desespero extremo, impossível. Ao mesmo tempo um desespero que constitui um grito para quem, como nós, habita do lado seguro da fronteira.

Estaremos dispostos a ouvir esse grito? Na semana passada o Conselho Europeu reuniu-se de emergência para discutir a pressão migratória no Mediterrâneo. Dessa reunião saíram medidas importantes para o combate às redes de imigração clandestina, incluindo a identificação, captura e destruição dos navios antes de estes serem utilizados pelos traficantes.

De igual modo, propôs-se aumentar a cooperação com os países de origem, procurando, na medida do possível, melhorar as condições de vida das pessoas, prevenindo, assim, novas vagas migratórias. Eis uma medida que não terá eficácia imediata. Lembremos, como escreveu Paul Collier no seu livro Exodus: How Migration Is Changing Our World, que os migrantes não são sequer os mais pobres nos seus países são aqueles que, apesar de tudo, conseguem reunir os recursos para sair.

Uma cooperação efectiva passa não apenas por colaborar com os países de origem no controlo fronteiriço e na disseminação de informação, mas, sobretudo, por apoiar os esforços de paz e de desenvolvimento para que os nacionais desses países aí possam encontrar condições de vida condignas.

Há, por outro lado, um equívoco frequente a propósito da situação pessoal dos migrantes, que se tem adensado na discussão pública sobre as decisões do Conselho Europeu. A relocalização das pessoas dentro da União Europeia a que se refere o conselho é restrita aos refugiados aos que pedem asilo e quando este, após verificação das condições individuais, lhes é concedido. Isto não se estende aos restantes migrantes. Só os que possam provar que se encontram em situação de perseguição e risco pessoal nos seus países de origem virão a beneficiar da protecção deste estatuto.

Caberia ou caberá aos Estados-membros da União Europeia o acolhimento dos que não possam qualificar-se como refugiados nos termos restritos da Convenção de 1951 sobre a Protecção dos Refugiados – mas sobre isso não ouvimos uma palavra do conselho. Essa é uma decisão que cabe aos Estados, individualmente considerados.

Decidiu também o conselho reforçar os meios de vigilância no Mediterrâneo, não apenas para detectar e prevenir as redes de traficantes, mas também para prestar assistência a quem se encontra em espaço sob jurisdição europeia – de forma a que as situações dramáticas a que assistimos nos últimos dias se não repitam.

É certamente consensual a decisão de reforçar a presença no Mediterrâneo de navios europeus que permita a salvar as vidas dos que ali se encontram. Deveria ter sido adoptada há muito.

Mas e depois? O que sucede após estas pessoas serem recolhidas e de lhes ser prestada a assistência humanitária a que têm direito? O que acontece do lado de cá da fronteira?

Há fronteiras de diversos tipos. Há as fronteiras activas, brutais, mastodônticas. Há os muros, o arame farpado, a fronteira militarizada. Há isso tudo. E, depois, há a fronteira da Europa dos direitos humanos. Silente, omissa, solitária. Apenas o mar e a natureza em fúria. Deixando as balsas à deriva. Literalmente.

Voltemos a colocar-nos na posição de quem se encontra, num qualquer aeroporto, prestes a ser interrogado por um oficial de um serviço de estrangeiros. Nesse momento conforta-nos pensar que, na pior das hipóteses, se nos recusarem a entrada, regressaremos a casa, no próximo voo, à protecção dos nossos países.

No caso dos migrantes do Mediterrâneo, na pior das hipóteses pagam com a vida a sua audácia. Na melhor, não lhes sendo concedido o asilo, voltam para os seus países, devolvidos ao desespero de que fugiram.

Queremos ouvir esse grito?

Director do Observatório das Migrações

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