O "espírito do discurso" de Juncker e o futuro da Europa

O Presidente da Comissão parece colocar-se num plano muito acima da equipa de comissários que vai dirigir. Isso pode não ser necessariamente negativo.

1. A semana europeia ficou marcada pela despedida de Durão Barroso e pela aprovação da nova Comissão pelo Parlamento Europeu. Barroso proferiu na hora da saída um discurso de balanço naturalmente impregnado de um tom algo triunfalista mas não iludindo alguma insatisfação perante o comportamento de vários países europeus. As considerações ambíguas que a esse respeito formulou constituíram mesmo a parte hermenêuticamente mais interessante da sua alocução. Ao longo dos dois mandatos em que desempenhou as funções de Presidente da Comissão, Durão Barroso evidenciou linearmente as suas qualidades e os seus defeitos. Esteve bem em tempos dados aos compromissos institucionais, esteve mal nos momentos em que se lhe exigia uma atitude mais visionária e corajosa. Nos últimos anos compactuou excessivamente com a progressiva afirmação de uma liderança unipolar germânica de nefastas consequências para a saúde do projecto europeu. É certo que não era fácil a sua posição e é mesmo de admitir que qualquer outro no lugar dele tivesse agido de forma análoga. O que é facto é que foi sob a sua presidência que nestes tempos mais recentes se assistiu ao apagamento da Comissão no âmbito da complexa arquitectura institucional europeia. Talvez por isso tem sido objecto de ataques que me parecem excessivos na generalidade da imprensa internacional. O tempo colocará as coisas no seu devido lugar.

Jean-Claude Juncker voltou a causar uma boa impressão junto dos parlamentares europeus. Exibiu autoridade institucional, proclamou uma clara vontade de mudança, assumiu o compromisso concreto de apresentar até ao Natal um plano de investimentos dedicado aos sectores mais relevantes para a modernização da economia europeia. Colocou com a devida ênfase a questão social no centro do debate político procurando ir ao encontro das exigências formuladas pelo centro-esquerda europeu. Mais do que o discurso em si mesmo, o mais marcante foi aquilo que poderíamos designar como o "espírito do discurso". As suas palavras não se limitaram a enunciar propósitos, apontaram para um horizonte de sentido da intervenção política. Ora é sobretudo disso que a Europa precisa para superar um certo niilismo que se foi instalando no espaço público. Não sabemos se Juncker vai ou não estar à altura das expectativas que criou, mas o simples facto de as ter originado constitui já um progresso de inegável importância. Tudo vai depender do comportamento da Comissão a que preside e da atitude que virá a adoptar perante ela o Conselho Europeu.

A Comissão foi objecto de um escrutínio parlamentar de uma intensidade tal que ficaram bem visíveis as características políticas e pessoais de cada um dos seus membros. Nalguns casos, atendendo até às responsabilidades que lhes foram atribuídas, há razões para uma forte inquietação, noutros manifestaram-se surpresas muito agradáveis, auspiciosas de um bom trabalho a levar a cabo. Num caso único, o do Comissário indicado pelo Governo Húngaro, desceu-se a um patamar dificilmente compatível com a dignidade das instituições comunitárias. É caso para dizer que o Presidente se parece colocar num plano muito acima da equipa de comissários que vai dirigir. Isso pode não ser necessariamente negativo.

Já no caso da articulação com o Conselho tudo vai depender da reconfiguração do sistema de relações de poder entre os vários Estados Membros. A liderança unipolar germânica, assente no apoio dos países da sua zona de influência histórica e económica, não tem concorrido nem para o reforço do projecto europeu nem para a melhoria da situação económica e social dos países que enfrentam maiores dificuldades. Se é verdade que nada de verdadeiramente significativo se pode hoje fazer numa perspectiva de rejeição do papel nuclear da nação germânica, também é verdade que nada melhorará se não se alcançar um reequilíbrio na relação de forças intra-europeias. A atitude recentemente assumida quer pela França quer pela Itália na questão orçamental aparenta esboçar uma vontade de promover esse reequilíbrio. A forma como esse assunto vier a ser resolvido constituirá aliás o primeiro sinal sério do que vai suceder neste novo ciclo da vida politica na Europa.

Os próximos meses vão ser por isso mesmo decisivos. Até ao Natal, Juncker apresentará o programa de investimentos a que atribuiu tanta importância e a Comissão terá que pronunciar-se acerca da questão do incumprimento das metas orçamentais por vários Estados Membros. Ai se verá se esta vontade de mudança que parece genuína consegue prevalecer sobre uma certa ortodoxia fundamentalista que tem inspirado no passado recente as orientações politicas no espaço Europeu. Tenhamos esperança.

2. Em Hong Kong, jovens universitários corajosos estão a lutar generosamente pela democracia. Têm quase tudo contra eles: a grande potência chinesa, o cinismo dos interesses económicos e comerciais de grande parte da comunidade internacional, a incompreensão de quantos se deixam cegar por uma estranha paixão ideológica remanescente das velhas utopias comunistas. Apesar disso tudo, resistem com dignidade e abertura para um diálogo construtivo com as autoridades. Estas deram nos últimos dias sinais de favorecer esse mesmo diálogo, o que, a acontecer, se revestirá de excepcional importância para aquela zona nevrálgica do mundo. Suceda o que suceder, uma coisa é certa  ?  aqueles jovens inquietos e lutadores estão a dar uma lição ao mundo e muito em particular a todos aqueles que, tendo o sortilégio de viver em sociedades abertas, cedem com demasiada facilidade a apelos extremistas de contornos verdadeiramente antidemocráticos.

3. A eleição de Portugal para o Conselho de Direitos Humanos da ONU para o biénio 2015-2017 constitui, até pela excepcional expressão da votação, uma inequívoca vitória da diplomacia portuguesa. Merece registo e aplauso.

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