O entreguismo europeu

Está a ganhar forma um dos maiores ataques ao establishment político-económico-financeiro desde a instauração dos regimes demo-liberais.

A mensagem que os dirigentes da União Europeia quiseram transmitir aos cidadãos europeus desde o início da crise não podia ter sido mais clara e directa: salvar os bancos é mais importante do que salvar as pessoas. Foi com base neste enunciado que se construíram as políticas austeritárias que transformaram a Europa num campo de batalha ideológico como não se via desde os tempos da guerra-fria.

A forma desastrada, para não dizer desastrosa, como os governos europeus lidaram com a crise das dívidas soberanas, impondo aos países em dificuldades “anos de chumbo” em termos sociais e humanos, é grandemente responsável pela eclosão dos novos movimentos políticos, que com formulações mais ou menos radicais, começam a chegar ao poder na Europa e que ameaçam a hegemonia dos partidos tradicionais e o chamado “consenso de Bruxelas” entre sociais-democratas e neoliberais.

O comportamento perverso dos governantes nacionais e europeus diz muito sobre o fosso que separa os dirigentes políticos dos cidadãos cujos interesses deviam representar. Acontece que a lógica de representação política foi subvertida e hoje os interesses dos cidadãos estão longe de constituir uma prioridade para a maioria dos políticos que obedecem a agendas próprias e partidárias, determinadas por poderes fácticos contrários ao interesse geral.  Os dirigentes políticos nacionais e europeus deixaram de se preocupar com a alarmante circunstância de cada vez menos cidadãos confiarem no sistema político – como se prova através dos níveis recordes de abstenção, de votos brancos e nulos e de votos nos partidos anti-sistema – uma vez que sabem que a principal fonte de legitimidade do actual sistema não reside nos cidadãos, mas sim nos poderes corporativos, económicos e financeiros. Este tipo de pensamento político, hoje dominante, está superiormente ilustrado na frase do livre-pensador americano Noam Chomsky: “O povo é livre de pensar que governa sempre enquanto não tente imiscuir-se nos assuntos que lhe dizem respeito”.

Esta degenerescência do modelo democrático tem resultado no esvaziamento do conceito de soberania popular e na transferência dos centros de decisão política para instâncias não eleitas, sem legitimidade democrática e que escapam totalmente ao controlo dos cidadãos. O maior dos paradoxos é que os Estados alienaram a sua soberania às instituições financeiras, não para evitar a degradação do nível de vida dos seus concidadãos, mas antes para salvar outras instituições do universo financeiro, designadamente a banca, e consequentemente onerar e degradar ainda mais as condições de vida da maioria desses cidadãos. A Europa deixou assim de ser uma democracia de cidadãos para se transformar numa “democracia de mercado”, sustentada numa narrativa de pensamento único, arquitetada por mercantilizados “centros de saber”, entre os quais se contam faculdades de economia e de ciência política, think-thanks, serviços de business inteligence e grupos de media, financiados por poderosas organizações económicas transnacionais, cujo objectivo é difundir e perpetuar o modelo da ortodoxia financeira e neoliberal que se encontra plasmada na bíblia das instituições europeias: o Tratado Orçamental. Esta “democracia de mercado” que hoje vigora na Europa está ainda assente naquilo a que se pode designar por “entreguismo”. Isto é, a entrega da soberania e dos recursos dos Estados a entidades externas, não eleitas e não escrutináveis pelos cidadãos, como foi – maxime – o caso da troika.

É por isso que a vitória do Syriza na Grécia, ao contrário do que o spinning da máquina de propaganda europeia tenta fazer passar, está a minar os alicerces da ortodoxia neoliberal mostrando às opiniões públicas dos países europeus que há um caminho alternativo àquele que tem dominado a Europa desde a chegada da Sra. Merkel ao poder na Alemanha.

Já pouca gente tem dúvidas que na generalidade dos países europeus se começa a formar uma maioria social contrária à continuação das políticas de austeridade e que num ano eleitoral decisivo como aquele em que nos encontramos, pode estar a ganhar forma um dos maiores ataques ao establishment político-económico-financeiro desde a instauração dos regimes demo-liberais.

As recentes declarações de alguns líderes europeus começam a revelar um crescente temor por aquilo que poderão ser as próximas opções dos eleitores europeus. Primeiro foi o Presidente da Comissão Jean-Claude Juncker que veio afirmar que a troika pecara contra a dignidade dos cidadãos dos países resgatados. Depois foi o Presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, que admitiu abertamente que os sacrifícios impostos às pessoas tiveram como objectivo salvar os bancos. Mas será provavelmente demasiado tarde para os actuais timoneiros da Europa emendarem a mão, mesmo que tudo seja feito para manter os gregos na zona de conforto do euro. Os “golpes de rins” dos dirigentes europeus não conseguirão apagar os efeitos devastadores em termos económicos, sociais e humanitários das decisões tomadas por Bruxelas nos últimos anos e que fizeram recair sobre os cidadãos dos países do Sul o pagamento dos erros políticos acumulados ao longo de décadas por sucessivos governos nacionais em conluio com o directório europeu e a sua máquina tecnocrática.

Os Senhores da Europa tiveram na Grécia, e não deixarão de ter nos restantes países europeus, vítimas das mesmas políticas pusilânimes, a devida resposta eleitoral por parte dos cidadãos. E os partidos do “centrão” europeu não deixarão de pagar nas urnas a alienação que os fez sucumbir aos interesses do poder económico e dos mercados financeiros e os conduziu ao afastamento da única fonte de legitimidade política admissível em democracia: o povo.

Militante do PS, promotor do Manifesto Primárias Já

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