O ébola nunca tinha chegado a uma capital, por isso é tão perigoso

A febre hemorrágica que está a fazer mortos na África Ocidental ainda vai levar pelo menos dois meses a controlar, diz a OMS. Como surgiu é um mistério ainda a desvendar. Mas é provável que no início da história tenha havido um morcego.

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Botas e luvas usadas pelo pessoal médico dos Médicos Sem Fronteiras que lida com os doentes na Guiné-Conacri SEYLLOU/AFP

O surto de ébola que está a atingir a Guiné-Conacri e outros países vizinhos “é o que representa o maior desafio” desde que a doença foi identificada há 40 anos, reconheceu o vice-director da Organização Mundial de Saúde (OMS). Esta foi a primeira vez que o vírus que causa uma febre hemorrágica chegou à capital de um país da África Ocidental e ainda por cima a uma cidade portuária, com dois milhões de habitantes. Até agora, o vírus passou para seres humanos em locais remotos e pouco habitados.

“Esperamos ter de combater este surto durante os próximos dois, três, quatro meses, antes de podermos sentir-nos confortáveis para dizer que já o ultrapassámos”, afirmou Keiji Fukuda, vice-director-geral da OMS. A epidemia começou no Sul da Guiné-Conacri – segundo a revista New Scientist, perto da mina de ferro Simandou, entre as cidades de Macenta e Beyla. Ali trabalham 1500 pessoas, mas um pólo mineiro atrai sempre grande movimento de pessoas, o que facilita a dispersão da infecção.

A doença progrediu sem ser dado o alarme durante algumas semanas, numa zona de muitas florestas e a falta de médicos na Guiné-Conacri tê-la-á ajudado a fazer a viagem de mais de 600 quilómetros até à capital. De acordo com o Banco Mundial, há apenas um médico por cada mil pessoas naquele país – uma das mais baixas taxas do mundo, ainda mais do que no Afeganistão.

Não se sabe ainda a origem da infecção, mas é provável que no início de tudo tenha havido morcegos, provavelmente morcegos-da-fruta. Suspeita-se de que estes mamíferos voadores – grandes, ao contrário dos seus congéneres comedores de insectos que conhecemos em Portugal – são os reservatórios naturais do vírus do Ébola, identificado pela primeira vez em 1976, no então Zaire (hoje República Democrática do Congo), junto a um rio ao qual tomou o nome.

Nos últimos anos, várias infecções emergentes têm sido associadas a morcegos, para além do Ébola: síndroma respiratória do Médio Oriente (MERS), vírus Nipah e Hendra, e também a SARS, dizia a revista Science em Agosto, num artigo noticioso. Os morcegos desempenham importantes papéis ecológicos, nomeadamente como polinizadores. O que é os transforma também em potenciais bombas biológicas? Isso ainda não se sabe.

Uma pista importante a seguir é a dos apetites humanos: os homens comem morcegos em África e comem muitos outros animais selvagens – a chamada “carne da selva”. Os animais podem ter sido contaminados pelas fezes destes mamíferos voadores. O Governo da Guiné-Conacri proibiu o consumo de morcegos – que se costumam comer numa sopa picante, diz a BBC – quando foi declarado o surto de Ébola, mas terá sido tarde demais.

Há 101 mortos
“O mais importante é a tendência de propagação de infecção. Aparentemente, há risco de outros países serem infectados, por isso é imperioso permanecer vigilante”, afirmou Stéphane Hugonnet, perito médico da OMS. Há 157 pessoas infectadas no total, segundo os números mais actualizados da OMS, e desses 101 foram mortais.

Além da Guiné-Conacri, há casos na Libéria e Serra Leoa, suspeitas no Mali e temores no Senegal – um país que recebe muitos turistas. Há receio de que a doença possa sair do continente africano e chegar à Europa, por isso a Guiné-Conacri começou no fim-de-semana a controlar a saúde de quem sai de avião do país.

A doença pode ter uma mortalidade de 90%, se as pessoas infectadas não receberam cuidados adequados – embora não haja vacinas ou antivirais que combatam o vírus. Houve um pico de investigação após os ataques terroristas de 11 e Setembro de 2001 nos Estados Unidos, porque o Ébola é considerado um potencial agente de bioterrorismo, mas é uma infecção tão rara que não é considerado um investimento lucrativo que leve as as empresas farmacêuticas a investigarem.

O que há a fazer é manter o paciente bem hidratado e em isolamento, para não infectar outras pessoas, nem o pessoal de saúde que está a cuidar dele.

Porque a doença é de facto horrível. O vírus faz com que se abram minúsculos buracos no revestimento interno dos vasos sanguíneos, que fazem com que o sangue se derrame, enquanto é normalmente bombeado por todo o corpo, descreve Laurie Garrett, especialista em saúde global do Council on Foreign Relations, num artigo publicado no fim de Março na revista Foreign Policy.

Essas fissuras alargam-se e o sangue torna-se uma cheia que alaga os órgãos. A febre sobe, os doentes alucinam e têm dores imensas. As suas lágrimas misturam-se com sangue, que começa a sair também pelo nariz, ouvidos, boca, todos os orifícios do corpo. A morte ocorre dentro de cinco dias. Quem cuida do doente ou quem preparar o corpo para o funeral pode ser contagiado, se entrar em contacto com os fluidos corporais do cadáver.

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