O duche escocês

Dirão sim? Dirão não? Yes? No? Aye? Nay? Seja qual for o sentido de voto dos escoceses no referendo de 18 de Setembro, no qual decidirão do seu destino no Reino Unido ou fora dele, o certo é que as oscilações das sondagens se assemelham a um duche escocês: água quente, água fria, mas sem qualquer relaxamento, pelo contrário, avolumando antes as tensões (e são tantas) acumuladas ao longo de séculos. Só que há mais Escócia para além delas.

Uma visita a Edimburgo no Agosto dos muito concorridos festivais anuais (o Internacional e o alternativo Fringe, este de programação quase enciclopédica), nascidos ambos no pós-guerra, em 1947, e mantidos estoicamente até hoje com assombrosa afluência de público, mostra que se a Escócia entrou há muito nas praças do mundo, o mundo também é capaz de desabar inteiro ali. Um trânsito recíproco, aliás. Os festivais convocam para as ruas e salas da capital escocesa uma babel de culturas e excentricidades, mas no reverso os escoceses também querem mostrar que ao longo dos séculos têm deixado marcas pelo mundo fora. 

Quem visitar a St. Mary’s Cathedral verá, espelhada em dezenas de painéis de tapeçaria, uma síntese da diáspora da velha Alba. Nas vizinhas Inglaterra e Irlanda, mas também em França, Alemanha, Itália, Holanda, Noruega, Portugal, Rússia, China, Índia, África do Sul, Canadá, Estados Unidos, numa longa lista de pequenas e grandes aventuras. Protagonistas? Escoceses ou seus descendentes, envolvidos em vários ramos da actividade humana: uns criaram igrejas, outros escolas, outros tornaram-se escritores, pintores, músicos, políticos, sindicalistas, uns vingaram na medicina ou na biologia, outros triunfaram no comércio. Os painéis de pano bordado transformam-nos em emblemas, ou bandeiras, com estilos que cruzam o heráldico com o naif, mas é nas pequenas histórias que lhes servem de legendas que se encontram os personagens, uns bem conhecidos (como Maria Stuart, a Rainha de destino trágico) outros até praticamente anónimos. Como Isabella, uma escocesa que durante a II Guerra se apaixonou por um prisioneiro alemão, de seu nome Helmut Joswig. Após a libertação deste, em 1948, casaram em Edimburgo e quiseram recomeçar a vida livres do peso do seu passado. Isso foi possível na Escócia, mas quando quiseram mudar-se para a Alemanha, em 1953, “ninguém quis alugar casa a um antigo inimigo”. Não desarmaram: construíram a sua própria casa, assegurando razoável descendência: cinco filhos, sete netos, seis bisnetos. “Uma comunidade da diáspora inteiramente sua”, remata a legenda.

Portugal, neste mosaico escocês, é contemplado com três painéis. O primeiro fala de John Drummond, cavaleiro nascido cerca de 1400 numa família ilustre, que em 1424 foi dos primeiros colonos a aportar à ilha da Madeira (onde é também conhecido por João Escórcio, corruptela de John the Scot). Ali casou, com Branca Afonso, morrendo por volta de 1464. Os outros dois têm a ver com o Douro e o Vinho do Porto: George Sandeman e Robert Cockburn, que se estabeleceram em Portugal, respectivamente, em 1790 e em 1815. Mas o último painel lembra ainda outros escoceses ligados ao mesmo negócio: Dow, Gould Campbell e Symington.

Demora algum tempo a ler (ou reler) estas histórias que ali vão continuar até Novembro, quem sabe se numa Escócia já independente. Mas entre as muitas histórias que Edimburgo tem para contar do seu passado (dramáticas, gloriosas, heróicas, sangrentas), continua a atrair os visitantes a de um cão, Greyfriars Bobby. Foi fiel companheiro de um guarda nocturno chamado John Gray durante dois anos, até que este morreu de tuberculose, em 1858, e foi enterrado no cemitério junto à igreja de Greyfriars. Daí o nome por que é conhecido hoje o cão que, nos 12 anos seguintes, não abandonou a campa do dono a não ser, dizem, para procurar comida. A cidade adoptou-o. E após a sua morte, em 1872, foi enterrado perto do cemitério, num terreno que era propriedade da igreja, a cerca de 70 metros da campa de John, ostentando o cemitério ainda hoje uma estátua do cão (talvez a única estátua de um cão num cemitério humano no mundo) com a seguinte legenda: “Que a sua lealdade e devoção sejam uma lição para todos nós.” Como votarão os cultores de Bobby no referendo de dia 18?

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