O drama das crianças roubadas

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Inês Pérez anunciou à sua filha Inês Madrigal, tinha ela então 18 anos, que havia sido adoptada Francisco Bonilla/ Cortesia <i>El País</i>

Os relatos são tantos e tão espantosos que toda a dúvida parece legítima. E quando se trata de saber quem efectivamente somos e de onde vimos, o caso torna-se explosivo. Práticas falsamente legitimadas pela vitória dos vencedores da Guerra Civil continuaram. Sob o manto do paternalismo para com as mulheres mais débeis. E numa actividade mercantil de compra e venda de recém-nascidos.

Tudo começou nos anos imediatos à vitória de Franco na Guerra Civil, quando às presas republicanas eram retirados os seus recém-nascidos. Ultrapassada a fase mais dura da repressão franquista, a partir dos anos 60 do século passado, esta prática continuou com mulheres em situação mais débil ou mães solteiras. Com a instauração da democracia prosseguiram as adopções ilegais. Iniciativas recentes para favorecer o reencontro entre pais e filhos provocam comoção. Avivam o passado. Despertam suspeitas adormecidas. Suscitam revolta. Geram ansiedades. O drama das crianças roubadas agita a Espanha.

"Quando tinha 18 anos, a minha mãe disse-me que tinha uma coisa muito importante para me dizer", recorda ao P2 Inês Madrigal, ferroviária de 41 anos. "Foi então que me disse que era adoptada e eu perguntei-lhe como foi", prossegue. O processo de adopção foi irregular. A própria mãe de Inês o reconhece. Queria um filho e recebeu a recém-nascida Inês das mãos do director da Clínica San Román, de Madrid, como "um presente". Uma bebé fruto de uma aventura extraconjugal de uma mulher casada, segundo a versão do médico: "Nasci, supostamente, em 4 de Junho de 1979." Franco morrera há mais de quatro anos, a Espanha era governada por Adolfo Suaréz e os espanhóis já tinham referendado a Constituição democrática.

"Descobri que o padre jesuíta que me baptizou e me casou, um homem preparado, catedrático de Ciências Exactas, tinha sido o mediador", relata Inês Madrigal. "Fui falar com ele pouco antes de morrer, ao retiro de Múrcia onde residia, disse-me que não sabia nada, mas deu-me o telefone de Eduardo Vela, o director da clínica", recorda. A investigação de Inês ficou, propositadamente, em aberto: "Durante uns anos, por respeito aos meus pais, com os quais tenho uma relação maravilhosa, não fiz mais nada." Um dia, de visita a Madrid, passou pela clínica. Já não era uma maternidade, mas um hospital geriátrico: "Disseram-me que o médico tinha falecido." E assim terminaram as suas indagações. Contudo, Eduardo Vela está vivo e mantém um consultório em Madrid. Em declarações ao diário El Mundo de 18 de Julho de 2010, o médico defendeu-se das acusações: "Estou de consciência tranquila. O que eu dizia às mães é que continuassem com a sua gravidez, que podiam dar os filhos para adopção, salvá-los, que as ajudaria, mas nunca por dinheiro." Ao jornalista, Vela assegura estar "em paz" com o seu "Deus", e é peremptório: "Não sei, como alguns dizem, se havia comércio com as crianças."

Para Inês Madrigal, com a maioridade terminou uma juventude de dúvidas e perguntas. "Tinha sete ou oito anos, então vivíamos em Zafra, na Estremadura, e o filho de um colega do meu pai chamava-me sempre "adoptada"", recorda, referindo-se ao primeiro sobressalto sobre a sua identidade. Mais tarde, procurou o reconhecimento da sua fisionomia na família: "Sempre perguntei com quem me parecia, via as fotos dos familiares e nunca encontrava uma parecença, nada."

Aos 18 anos, acabaram as suspeitas. Apesar de outros relatos se referirem a um negócio, a venda de recém-nascidos, Inês relativiza: "Não quero pensar que o sacerdote jesuíta conhecia a história da venda de crianças", afirma. "Não tenho nenhum rancor", garante. Mesmo "a quem me deixou", à sua mãe desconhecida: "Não posso admitir, para defesa da minha saúde mental, que fui roubada." Vive sem mágoa. Mas com um desejo: "Agora que sei que o meu caso não foi isolado, farei o possível para encontrar os meus pais biológicos."

"Não sei quem sou"

Para António Barroso, a revelação das suas origens chegou tarde. Há escassos quatro anos, com 38 de vida. "Um amigo, que estava no hospital com o seu pai à beira da morte, telefonou-me e revelou-me que o pai lhe tinha confessado que tanto ele como eu tínhamos sido comprados a um padre e a uma freira, em Saragoça, em 1969", refere. Deram a escolher, menino ou menina. A venda de cada um dos recém-nascidos rondou as 150 mil pesetas (a preços actuais, calculados com base no diferencial de inflação, 18 mil euros). O amigo do telefonema-revelação é Juan Luís Moreno, que, com Barroso, fundou a Associação Nacional de Afectados por Adopções Irregulares (Anadir). A versão foi confirmada pelos pais de Barroso: "A minha mãe disse-me que não sabia que era uma adopção ilegal e que só queria adoptar uma criança. Considero-a tão vítima como eu."

Só agora, António Barroso e Luís Moreno compreenderam as visitas periódicas dos seus pais a Saragoça durante anos a fio: iam pagar a dívida, a compra dos filhos. As indagações de Barroso para desvendar as suas origens não ultrapassaram a fase preliminar. "Fui ao hospital de Saragoça e disseram-me que não tinham nada nos arquivos", lamenta. Agora, espera o desenrolar de novas investigações. O fiscal-geral do Estado - equivalente ao procurador-geral da República, em Portugal - vai nomear um magistrado para coordenar os inquéritos que vão ser realizados após a apresentação, pela Anadir, de 261 queixas.

Na passada quarta-feira, após uma reunião com outra associação, Plataforma de Afectados de Clínicas de toda a Espanha, o ministro da Justiça, Francisco Caamaño, fez dois importantes anúncios: a criação de um Departamento que ajude os afectados a aceder a arquivos e registos da administração pública ("Uma senhora de 40 anos, de Barcelona, que foi roubada na clínica onde nasceu em 1971, está na posse de uma cópia da sua certidão de óbito após o parto, mas não quer falar sobre o caso", exemplifica António Barroso) e o lançamento de um programa específico para que sejam gratuitas as provas de ADN desde que autorizadas pela Justiça. Esta é a única forma de apurar a filiação, por os registos não darem resposta fidedigna.

Estas são situações-limite que, no entanto, parecem estranhamente triviais. Como desconcertantes têm sido, até agora, as respostas da administração. "Eu e Juan Luís Moreno apresentámos uma queixa no Tribunal de Saragoça que foi arquivada com o argumento de que tinha prescrito, o que não é verdade", desabafa Barroso. Indefesas perante a muralha burocrática, as vítimas de adopções irregulares vivem um calvário. "Quem está nesta situação sofre uma carga emocional muito forte", analisa o psiquiatra Rafael Huertas. "Quem é adoptado tem necessidade de procurar os seus pais biológicos e de responder às perguntas básicas - "Quem sou?" e "De onde venho?" -, e se a adopção for irregular é razoável que se sintam como vítimas", acentua o clínico.

As angústias de António Barroso confirmam este diagnóstico. "Vivi toda a minha vida numa mentira, como se não tivesse história, como se tivesse aparecido do nada", desabafa. "Tenho uma documentação falsificada, fui e estou sequestrado. É horrível, pois não sei quem sou."

"O meu filho está vivo"

Os relatos destes casos acenderam os alarmes na sociedade espanhola. Episódios antigos, dramas familiares adormecidos pelo passar do tempo, recuperaram actualidade. As suspeitas de outrora são hoje inquietações permanentes. Histórias que foram contadas em surdina são publicadas nos meios de comunicação. A confirmação de que não são meros rumores, mas factos reais que fundamentam queixas à Justiça, amplia a sua repercussão. Afinal, o que foram apenas desconfianças têm credibilidade para obrigar a decisões de ministros e juízes. O sobressalto instala-se em quem passou por lances de vida conturbados. Toda a dúvida parece legítima.

"Em 11 de Novembro de 1986, numa clínica de Barcelona, a minha mãe deu à luz gémeas", relata Estefania Anguita, de 24 anos, estudante. "Duas horas após o parto comunicaram aos meus pais que uma das crianças tinha morrido", prossegue: "O meu pai pediu para ver o corpo da menina morta e disseram que era melhor não, porque seria um trauma." O relato continua: "A minha avó quis enterrar a menina e o hospital negou porque, como não tinha sobrevivido às primeiras 24 horas de vida, o hospital ocupar-se-ia do seu corpo."

Estes factos, ocorridos há 24 anos, não convenceram Estefania. "Sempre pensei nisso, com muitas dúvidas." Agora, a estranheza passou a suspeita: "Foi quando começaram a aparecer estas coisas, espero que o meu caso seja investigado." A sua vida podia não ser a que é. E talvez devesse. Ou talvez não. "Quero saber a verdade, não tenho irmãos, sempre fui criada só", diz, num lamento.

À porta do Ministério da Justiça, na Calle San Bernardo, de Madrid, Enrique Pertirán Aranz, de 75 anos, não disfarça a ansiedade. Olha para o relógio. Espera as 17h00 de 16 de Fevereiro. Todo o dia andou em rebuliço. "De manhã, estive no Parlamento, depois fui ao defensor del Pueblo [provedor de Justiça, em Portugal] e agora estou aqui", refere. Acompanha o périplo da associação Plataforma de Afectados das Clínicas de toda a Espanha junto dos poderes públicos. A meio de uma tarde fria, com um vento cortante e chuva gélida, Enrique resiste. Não denota sinais de cansaço. Aquece-o o turbilhão da esperança. De poder contar ao ministro da Justiça o que apelida de "meu caso".

"O meu filho está vivo e tem 48 anos e sete meses." Enrique é rotundo na certeza, peremptório na afirmação. No entanto, em Agosto de 1962, no Hospital O"Donnell da capital espanhola, disseram-lhe que o recém-nascido falecera. Mostraram-lhe um corpo que estava na câmara frigorífica. Que ele enterrou. "Só vi o meu filho no dia em que nasceu, uma vez. Nunca mais o pude ver", recorda com tristeza: "Disseram-me que morreu de otite." Teve outros filhos: "Tentei o rapaz, e tive quatro filhas de seguida, mas não me queixo."

Enrique não confessa se viveu décadas de suspeita. Ou de angústia permanente. "Quando se levantou esta questão, comecei a pensar...", admite. Desde então, refere "o meu caso" como mais um. "Há que comprar muita gente para que permanecesse em silêncio": esta é a sua tese. A de uma conspiração poderosa e sinistra, uma autêntica omertà.

Trabalho para a Justiça

Teoria errada. No imediato pós-guerra, às presas republicanas eram retirados os filhos, sem subterfúgios, às claras, seguindo as indicações do coronel médico e psiquiatra António Vallejo Nájera, primeiro-catedrático de Psiquiatria de Espanha e confesso franquista. "Ele recorre a uma utilização muito simbólica e retórica, não sei se acreditava que o marxismo se herdava, mas considerava que se deviam retirar os filhos às mães presas para evitar o contágio do gene marxista", explica Rafael Huertas, psiquiatra que trabalha no Centro Superior de Investigações Sociais de Madrid. "É muito semelhante ao ocorrido nas ditaduras da América do Sul no final do século XX", compara.

Estas práticas terminaram em meados dos anos 50 do século passado. "Aquando do ataque aos marxistas, republicanos e democratas, passou-se à legitimação do franquismo por outras vias", precisa Huertas. Terminados os anos mais duros da repressão aos vencidos da Guerra Civil, segundo Montse Armengon e Ricard Belis, autores de Los Niños Perdidos del Franquismo, cerca de 30 mil crianças foram retiradas às mães e entregues a famílias afectas ao regime.

Correcção social

Já para Santos Juliá, catedrático de História Social e prémio Nacional de História em 2004, estas práticas foram anteriores ao conflito de 1936/39, à Guerra Civil. "As condições de crescimento das cidades de Espanha entre 1910 e 30 repousavam em famílias numerosas que cediam os seus filhos a familiares ou aos apoios sociais do Estado que, então, estavam nas mãos da Igreja", recorda Santos Juliá. "Os grandes movimentos migratórios em Espanha foram acompanhados de grande miséria, terão sido o caldo de cultivo destas situações", precisa o catedrático.

A partir dos anos 60, as adopções ilegais continuam. Com objectivos diferentes. "Numa sociedade muito conservadora e com um peso determinante da Igreja, as mães solteiras ou grávidas em situação de debilidade social - como a mãe biológica de Inês Madrigal, uma mulher casada com uma aventura extraconjugal - eram convencidas a largar os filhos", analisa o psiquiatra Rafael Huertas. No entanto, esta atitude de "correcção social", inspirada na moral católica e num enorme manto de paternalismo, coexistiu, segundo alguns indícios e queixas, com o negócio: uma actividade mercantil baseada na compra e venda de bebés ou recém-nascidos.

"O preço mais recente de que tenho conhecimento foi um milhão de pesetas [seis mil euros], em 1980", refere Enrique Villa, advogado da Anadir. Mas há notícias de adopções irregulares bem mais recentes. António Barroso, presidente da Anadir, enumera: "Em 1990, temos conhecimento da adopção irregular de um recém-nascido roubado numa clínica privada de Madrid, e de um caso na Catalunha e de outro na Andaluzia." Já neste século, Barroso refere que em 2007 e 2009, na área de Madrid, foram apresentadas duas queixas ao Ministério Público. A Anadir, num cálculo ousado, admite que existam, em Espanha, 300 mil casos de adopções irregulares. Contas feitas a partir do número total de adopções, dois milhões, e estimando que 15 por cento decorrem à margem da legalidade.

Por isso, é com indisfarçável ansiedade que se aguarda o final das investigações do Ministério Público de Cádis, na Andaluzia, numa queixa apresentada já há algum tempo por particulares. "Ainda não há processamento", comenta o advogado Villa. No entanto, é impossível quantificar a dimensão deste caso. Só as investigações, após criteriosa análise das queixas, e o tempo, depois de concluídos os inquéritos, permitirão uma aproximação a esta realidade. Complexa. Dolorosa. Sórdida. Triste. "Isso não é trabalho de historiador, mas da Justiça", desabafa o catedrático Santos Juliá.

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