O drama da Grécia

Uma vez mais se constata que a extrema-esquerda, na sua profunda irresponsabilidade, constitui a melhor aliada da direita europeia.

Há sempre um postal do pôr-do-sol à nossa espera. Ontem, ao atravessar uma praça de Bruxelas, deparei-me com uma jovem grega ostentando simultaneamente a bandeira do seu país e a da União Europeia. No seu olhar notava-se apreensão e júbilo. Os paradoxos são mais banais do que o que se pensa.

A seguir dediquei-me a ler as últimas notícias provenientes de Atenas. Uma multidão proclamava a adesão à Europa; do outro lado, Alexis Tsipras prosseguia a sua cruzada anti-austeridade. A Grécia faz parte do imaginário do mundo ocidental. Ali nasceu uma certa noção da razão que fecundou a filosofia e a ciência, originou uma nova forma de pensamento político e concebeu mesmo a democracia. É certo que o fez de acordo com uma representação da realidade muito distante do pensamento moderno, o que torna patéticas algumas homologias contemporâneas. O lugar da génese da racionalidade foi também o local da apoteose do mito e da tragédia. Para já não falar das extraordinárias comédias de Aristófanes.

Em suma, essa remota Grécia integra o melhor da memória dessa região singular do mundo que costumamos designar por Ocidente. Agora os tempos são outros. Tantos séculos decorridos, a Grécia contemporânea é um país localizado no extremo sul-oriental da Europa, lugar de fronteira com o complexo Médio Oriente e com a longínqua Ásia. Nos últimos tempos recuperou uma certa centralidade política por razões muito alheias ao seu distante prestígio histórico. A Grécia tornou-se no pedaço doente da nova Europa.

Durante quase quatro décadas foi governada alternadamente pelo centro-esquerda e pelo centro-direita, que tinham em comum o recurso a uma retórica nacionalista e populista e a adesão sem reservas à integração europeia. Vivia-se então, aparentemente, no melhor dos mundos: da Europa chegavam apoios financeiros que asseguravam a modernização superficial do país sem necessidade de contraditar a velha herança clânica e clientelar. As oligarquias económicas articulavam-se bem com a aristocracia política e esta não descurava a necessária legitimação democrática. Era o tempo dos grandes comícios que encerravam as campanhas eleitorais em Atenas, das multidões transportadas em autocarros alugados na antiga Jugoslávia, da retórica poderosa dos velhos condottieri da esquerda e da direita. Já então a Grécia contemporânea era de algum modo um mundo à parte.

Um dia a evidência desse desencontro tornar-se-ia inevitável. Ocorreu em 2011, quando Georgios Papandreou, recém-investido nas funções de primeiro-ministro, informou uma Europa incrédula que as contas relativas às finanças públicas helénicas tinham sido aldrabadas. Começou aí a crise das dívidas soberanas que tanto prejuízo causou no velho Continente. Confrontada com a situação, a União Europeia reagiu tarde e com escassa clarividência. Iniciava-se a divisão entre o Norte e o Sul, entre a ortodoxia monetária e orçamental e uma suposta e invectivada tendência para o laxismo financeiro. Desde então, em poucas ocasiões foi possível assegurar o triunfo da racionalidade analítica. Continuamos a sofrer os efeitos dessa enfermidade cognitiva.

Para os povos do Sul o inimigo passou a ter um rosto claro: o fanatismo puritano do protestantismo do Norte. Para as gentes do Norte os habitantes do Sul passaram a ser percebidos como irresponsáveis laxistas, indignos de qualquer tipo de confiança. Por muito que tal pareça estranho aos cânones mais mediáticos da actualidade, a cultura continua a ter precedência sobre a política e a economia. Se não fosse assim ninguém compreenderia que ignotos finlandeses se arvorassem em grandes educadores de desprezíveis povos do Sul. Uma nova linha divisória atravessava o Continente europeu. Essa linha divisória assentava em representações estereotipadas e, como tal, muito distanciadas da realidade. Infelizmente os principais dirigentes políticos não estiveram à altura de compreender esse logro. O resultado não poderia ser outro senão o drama a que estamos a assistir.

Alexis Tsipras teve um mérito e cometeu três erros crassos. O mérito, como já aqui referi na semana passada, consistiu na tentativa de sobrepor a dimensão política à discussão técnica no relacionamento com os parceiros e credores do seu país. Os erros foram os seguintes: a celebração de uma coligação com a direita hipernacionalista, o recurso a uma retórica antigermânica primária e a incapacidade de estabelecer alianças pragmáticas com governos de outros países. Notoriamente não esteve à altura das suas responsabilidades e muito menos das expectativas que chegou a criar, acabando por lançar o seu país numa situação caótica e desesperada. O balanço da governação do Syriza não poderia ser mais negativo: começou na exaltação nacionalista e acabou na rendição ideológica. A partir daqui, o Syriza, como perspectiva de uma solução alternativa, soçobrou. Revelou todas as insuficiências características das propostas extremistas – completa incompreensão da realidade, valorização de uma atitude declamatória alheia à satisfação das reais necessidades das pessoas, exibição de um moralismo purista desprovido de qualquer consequência política prática. É hoje evidente que o Syriza constituiu um monumental falhanço histórico. Confrontado com o seu próprio desespero, o primeiro-ministro grego decidiu-se pela convocação de um referendo de discutível legitimidade democrática que suscitou já a reprovação por parte dessa organização insuspeita que é o Conselho da Europa. No próximo Domingo a escolha só não será entre a continuidade ou não na União Europeia porque o Syriza está cada vez mais destinado a fazer parte de um parêntesis histórico desprovido de excessiva importância. A Grécia faz parte da Europa e a Europa faz parte da Grécia.

Tudo isto é verdade, mas não permite iludir as enormes responsabilidades europeias na presente crise. Ainda ontem Matteo Renzi deu provas da mediocridade das presentes lideranças nacionais ao afirmar que “é impensável que a Itália e os outros governos financiem as pensões gregas”. São palavras indignas de um primeiro-ministro empenhado na promoção de um verdadeiro projecto europeu. Infelizmente, à esquerda como à direita, é este tipo de discurso que tem prevalecido. O discurso primário do egoísmo, do nacionalismo bacoco, do populismo acrítico. A União Europeia há muito que tem falhado na abordagem dos problemas dos países do Sul. Se uma solução política caricatural como aquela que o Syriza representa pôde ter sucesso eleitoral tal deve-se em grande parte à obstinação ideológica de alguns governos pouco preocupados com o futuro da Europa. Que o governo português se tenha associado a essa mesma obstinação só revela a sua verdadeira natureza servil e medíocre.

Uma vez mais se constata que a extrema-esquerda, na sua profunda irresponsabilidade, constitui a melhor aliada da direita europeia. É o que se passa também no nosso país. Razão teve António Costa em se demarcar nitidamente das posições do Syriza, procurando deixar bem claro que pode haver no espaço europeu um projecto político alternativo ao populismo conservador e liberal que nos tem conduzido a um verdadeiro abismo económico e social. Contrariamente ao que a direita interesseira e alguma esquerda ingénua têm vindo a propalar, o Secretário-Geral do PS nunca manifestou especial apreço pelas soluções preconizadas pela extrema-esquerda grega. Sejamos sérios, António Costa limitou-se a dizer aquilo que qualquer observador lúcido diria: que o voto no Syriza significava uma reacção desesperada face às trágicas políticas austeritárias impostas ao povo grego. Aliás, basta ler com atenção o programa eleitoral do PS para compreender a intransponível distância que o separa das vacuidades demagógicas do Syriza. A verdade é que entre a direita e a extrema-esquerda sempre houve um caminho alternativo. Esse caminho designa-se por socialismo democrático ou social-democracia e é responsável pelo melhor da experiência histórica das últimas décadas europeias.

 

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