No xadrez ucraniano, é o rei que os peões querem derrubar

Ianukovitch é um presidente cada vez mais isolado dentro e fora da Ucrânia. Negociações com a oposição continuam e o Parlamento reúne-se hoje. Cimeira UE-Rússia decorre, também hoje, em ambiente de desconfiança.

Governo ucraniano ameaçou instaurar estado de emergência
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Governo ucraniano ameaçou instaurar estado de emergência Sergei Supinsky/AFP
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Uma cartada decisiva para o futuro da Ucrânia joga-se hoje durante a sessão parlamentar extraordinária convocada na semana passada. O tempo da negociação parece ter terminado e o Presidente, Viktor Ianukovitch, cada vez mais acossado dentro e fora de portas, parece estar a ficar sem opções. Durante o fim-de-semana apostou forte e “ofereceu” o Governo à oposição, esperando sacrificar o mínimo possível para terminar com a insurreição popular que já se propagou pelo país. Mas é precisamente a cabeça de Ianukovitch que os manifestantes querem e já nada menos que isso os pode apaziguar.

Para hoje espera-se uma sessão tensa no Parlamento de Kiev, a capital ucraniana, em que a bancada do Partido das Regiões (maioritário) já avisou, através do porta-voz Mikhailo Chechetov, que “o Parlamento não vai votar a demissão do Governo”. Para as ruas foi convocada uma concentração na Praça de Independência em solidariedade com os deputados pró-Governo.

Numa concessão sem precedentes no longo braço-de-ferro entre Presidente e oposição, Ianukovitch convidou no sábado o líder do Batkivchtchina (Pátria) – o partido de Iulia Timochenko, a “musa” da Revolução Laranja de 2004 –, Arseni Iatseniuk, para ser primeiro-ministro. O objectivo do Presidente ucraniano não era difícil de descortinar: oferecendo a chefia do executivo a um dos líderes do triunvirato da oposição joga com a ambição pessoal e explora as divisões entre os adversários.

Ianukovitch não contava, contudo, com a união (ainda que aparente) demonstrada pela oposição, mas, acima de tudo, com uma rua com um desejo inabalável: a marcação de eleições presidenciais. Quando Iatseniuk apareceu na Maidan (Praça da Independência) para anunciar a proposta, os gritos dos manifestantes foram inequívocos. “Vergonha!” e “traição!”, ouvia-se. A deliberação da Maidan foi soberana. “Quem vai escolher o chefe do próximo governo é o povo e não o Presidente”, fez questão de garantir Iatseniuk.

O “presente envenenado” deixa a imagem de um presidente cada vez mais isolado e a quem restam poucas saídas. Para além de a oposição ter deixado bem claro que não se quer associar ao regime actual – e nem as ruas lhe permitiriam tal traição –, Ianukovitch fica fragilizado perante o próprio executivo, que não terá gostado de se ver oferecido de bandeja.

Oeste controlado por manifestantes

O isolamento do Presidente é visível também à medida que os protestos se propagam a regiões tradicionalmente pró-russas. Milhares de manifestantes concentraram-se à porta do conselho regional de Zaporijjia e também em Dnipropetrovsk, onde membros de claques de futebol escoltaram os protestos, segundo a rádio Free Europe.

No Oeste da Ucrânia, região mais pró-europeia, os manifestantes tomaram praticamente todas as sedes dos governos regionais. Em cidades como Ivano-Frankivsk, Ternopil e Khmelnitski, os novos “governantes” chegaram a emitir decretos que proíbem a actividade e os símbolos do Partido das Regiões, de Ianukovitch, e do Partido Comunista. Em Lviv, a delegação local do Partido das Regiões decidiu ontem pela dissolução, dada a “situação actual”. “Quando a política do Partido das Regiões não vai ao encontro dos seus princípios programáticos, não une mas divide o país; condenamos os conselhos regionais que pediram uma solução forçada ao Presidente ou a declaração do estado de emergência no país”, justificou a direcção.

Em Kiev, vive-se um ambiente de “calma antes da tempestade”, como descreveu à Foreign Policy Dimitri Tereschenko, um “guarda” das barricadas. No domingo, dezenas de pessoas ligadas ao grupo Causa Comum ocuparam o edifício do Ministério da Justiça, levando a ministra Olena Lukash a ameaçar com a instauração do estado de emergência – cenário afastado pelo Governo, para já. A própria oposição criticou a acção do grupo, numa altura em que é preferível jogar na arena política e não nas ruas. Ao fim de 24 horas, os manifestantes abandonaram o edifício, mas não sem antes ameaçarem que voltariam, caso as suas reivindicações não fossem atendidas durante a sessão de hoje. A cabeça de Ianukovitch, mais uma vez.

Um xeque-mate iminente

É envolta num ambiente de crispação que a cimeira entre a União Europeia (UE) e a Rússia vai hoje decorrer. Frente a frente estão os dois modelos que encarnam os confrontos que atiraram a Ucrânia para o caos quando, no final de Novembro, Ianukovitch rejeitou a assinatura de um acordo comercial com a UE, preferindo uma aproximação a Moscovo.

A estratégia do Presidente russo, Vladimir Putin, que tem sido crítico da “interferência” dos países europeus na crise ucraniana, passa por retirar importância ao dossier no contexto do encontro, preferindo concentrar-se em questões económicas, comerciais e energéticas. Os responsáveis europeus, por seu turno, consideram que “há a necessidade de colocar as coisas em pratos limpos”, segundo um alto quadro, citado pela AFP.

A tensão que rodeia o encontro começou logo pela definição da agenda. Originalmente planeada para ser uma cimeira de dois dias, passou para uma pequena reunião de três horas, “cujas esperanças de um progresso são tão diminutas como a cimeira em si”, como escreveu o Financial Times, em editorial.

Nas capitais europeias ainda domina a confiança de que a crise na Ucrânia pode ser resolvida em termos políticos e, por isso, a imposição de sanções continua a ser afastada. Para sinalizar isso mesmo, a alta-comissária para as Relações Externas da UE, Catherine Ashton, antecipou para hoje a visita a Kiev que tinha agendado. No entanto, a cautela não impediu que vários responsáveis políticos manifestassem fortes críticas à actuação de Ianukovitch e, sobretudo, à repressão policial. A chanceler alemã, Angela Merkel, habitualmente muito contida em questões externas, reagiu com especial ferocidade à notícia das primeiras mortes nos confrontos, afirmando que o Governo tem o dever de “proteger a vida” dos manifestantes.

Com cada vez menos recursos, Ianukovitch já não tem muita margem de manobra. A estratégia de ganhar tempo e aguardar que os protestos esmoreçam provou ser ineficaz, bem como a tentativa de negociar lugares de governo com a oposição. Entre a propagação e a persistência dos protestos e a condenação internacional, o Presidente ucraniano já pouco pode fazer para adiar o xeque-mate final.
 
 
 
 

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