No tribunal onde Rafael Marques é julgado até os polícias lutam pelo seu livro

O activista e jornalista tem 24 acusações de difamação e denúncia caluniosa. Oito generais querem-no preso e 1,2 milhões de dólares. Numa sala a abarrotar, dia 24 de Março, generais, testemunhas e activistas assistiram à leitura de argumentos de acusação e defesa. Para esta quinta-feira está marcado o reinício do julgamento.

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Rafael Marques fotografado em Lisboa em 2011 Daniel Rocha

Dias depois de ter recebido em Londres o Prémio Liberdade de Expressão da Index on Censorship, Rafael Marques chega ao Tribunal Provincial de Luanda com andar tranquilo, a caminhar pela rua que neste dia, 24 de Março, está cercada pela polícia.

Sozinho, carrega um saco com vários exemplares de Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura em Angola, o livro pelo qual oito generais e o Ministério Público angolano o levam ao banco dos réus, exigindo a sua prisão e 1,2 milhões de dólares. 

Ao fim da 8.ª edição, a editora Tinta-da-China disponibilizou o livro gratuitamente na Internet, mas em Luanda há quem lute por um exemplar em papel, sobretudo trazido pela mão do autor. Não tarda que fique de mãos vazias.

São quase oito da manhã e as portas do tribunal ainda estão fechadas. No passeio, em frente do edifício do Ministério das Relações Exteriores, estão jornalistas, observadores de organizações internacionais, membros de organizações não-governamentais. Há um compasso de espera até à hora de entrar. 

Chegam os generais, e sobem as escadas do tribunal nos seus fatos de linho cinzento-claro, outros de azul-escuro. Não olham para ninguém, mas as atenções viram-se para eles, os co-proprietários de empresas que estão envolvidas nas denúncias de homicídios, tortura e violação de direitos humanos que Rafael Marques faz no livro: a Teleservice (segurança) e a Lumanhe (extracção diamantífera), parte do consórcio Sociedade Mineira do Cuango. Desaparecem para dentro do edifício.

Finalmente, as portas abrem ao público, e somos obrigados a largar tudo num pequeno armário: malas, casacos, passaportes. Desta vez, a polícia deixa entrar o telemóvel e um bloco de notas, mas dizem-nos os jornalistas locais que nem sempre o permitem.

Uma vez na sala, a espera provoca tensão. Começam a chegar curiosos, activistas, apoiantes dos generais, cada vez mais gente. A logística complica-se com aquilo que se tornou uma multidão dada a exiguidade do espaço. Os funcionários querem trazer um banco corrido para sentar mais pessoas, pedem a um grupo de jovens activistas para sair de modo a facilitar a manobra. Eles recusam, pois têm medo de, uma vez fora da sala, serem impedidos de regressar. Há quem diga que deviam ter arranjado uma sala maior, que ter este julgamento num espaço tão pequeno só pode ser de propósito para exaltar os ânimos.

De costas para a “plateia”, Rafael Marques é o único réu. De vez em quando levanta-se para falar com os seus dois advogados, David Mendes e Luís Nascimento. Há um burburinho com vozes mais exaltadas, Rafael Marques faz um gesto de “calma” com as duas mãos. Os activistas respondem com um riso: “Estamos calmos.”

Agora dá-se uma troca de argumentos entre um dos activistas mais conhecidos, Nito Alves, preso várias vezes, e funcionários do tribunal. O tom de voz do grupo de jovens sobe, há movimentações, o que leva um dos advogados de Marques a dizer: “Nito Alves, não dês numa de anarquista!” Nas costas da T-shirt amarela tem “Eu protesto, logo existo”. Teme-se que o levem, mas tantas câmaras e microfones talvez tenham dissuadido a polícia. Reforça-se, porém, a segurança dentro da sala, com um cordão à volta da zona onde Nito está.

Na fila da frente sentam-se agora os generais. Ficam ao lado das testemunhas de Marques, os regedores MwaCapenda-Camulemba e MwaMalundo, da Lunda-Norte, e de uma figura-chave, Linda Moisés da Rosa – disse a Rafael Marques ter perdido “dois filhos assassinados por soldados das Forças Armadas Angolanas e por funcionários da empresa privada de segurança Teleservice”.

Eis que uma funcionária do tribunal anuncia: “Quem tem alguma ‘necessidade’ que vá já.” E ordena: “Silêncio. Depois de o juiz entrar já ninguém pode sair. Também mais ninguém entra. Só quem é jornalista é que pode tirar notas.”

Entra o juiz, que se senta em frente da pilha de folhas do processo, anda com elas para a frente e para trás. Há uma troca de palavras entre os advogados de Marques e o juiz, mas não conseguimos perceber o quê. Segue-se uma discussão sobre se o julgamento é ou não à porta fechada. Apesar de todos defenderem o contrário – advogados de defesa e de acusação –, o juiz Adriano Cerveira Baptista não vai deixar ninguém assistir. Depois da leitura da acusação e da contestação só ficarão advogados, arguidos e ofendidos – e os observadores internacionais.

Segue-se a leitura dos argumentos.

Em 2004, Rafael Marques iniciou uma investigação sobre violações de direitos humanos na região diamantífera das Lundas (sobretudo nos municípios do Cuango e Xá-Muteba), e desde então tem vindo a publicar vários relatórios. Em 2011, apresentou uma queixa-crime contra oito generais, entre eles Hélder Manuel Vieira Dias Júnior “Kopelipa”, ministro de Estado e chefe da Casa de Segurança do Presidente da República, solicitando ao procurador-geral da República angolano a abertura de inquérito – mas em Junho de 2012 a Procuradoria-Geral da República (PGR) ordenou o arquivamento do processo.

Os generais, por sua vez, acusaram Marques da prática do crime de denúncia caluniosa e de difamação, razão pela qual o jornalista está agora em tribunal. Em 2012, os mesmos generais fizeram em Portugal uma queixa contra si e a editora Tinta-da-China, mas o processo seria arquivado em 2013 por falta de provas, pois a justiça portuguesa considerou que a publicação do livro foi um exercício da liberdade de expressão e informação.

Na sala do tribunal de Luanda, o nome de Rafael Marques e a sua data de nascimento, bem como a data de publicação do livro são repetidos várias vezes. 

“Feita a investigação, a PGR conclui que a queixa-crime não tinha qualquer fundamento por falta de suporte probatório e que as individualidades e sociedades citadas não tiveram qualquer participação directa ou indirecta em determinados factos denunciados, assim como outros não tinham sido produzidos”: assim é lida a justificação do arquivamento do processo pelo Ministério Público (MP). 

Fernando de Oliveira, advogado a representar a sociedade ITM Mining, que apresentou uma queixa por difamação, lê a acusação:

“Aparentando ter feito uma exaustiva e imparcial investigação, o arguido omite, amputa, deturpa informação relevante e publicamente acessível e, sobretudo, faz completo descaso de um escrutínio minimamente contraditório – ao longo da sua investigação nem uma única vez, e por qualquer forma, abordou ou interpelou os visados, os ora assistentes confrontando-os com as imputações acusatórias.”

Justifica o processo em tribunal como uma “campanha” que Marques “tem desencadeado contra os ora assistentes, envolvendo-os numa sinistra associação de malfeitores e de criminosos traficantes de diamantes de sangue – o próprio título bombástico do livro”. O que “tem causado gravíssimos danos morais e materiais aos assistentes quer no que respeita à reputação, bom-nome, património das empresas atingidas, quer a nível pessoal dos seus sócios”.

A defesa de Rafael Marques declara a “ilegitimidade activa dos assistentes para o acusar do crime de denúncia caluniosa”. Os generais “fazem-se representar duas vezes”, como assistentes do MP e como particulares. Acusa também o MP de violar as garantias constitucionais de presunção da inocência: “Vários comportamentos do MP levam a defesa a concluir que este MP se afastou dos princípios de objectividade e legalidade neste processo.” Por exemplo, através do “levantamento do sigilo bancário e dos motivos migratórios do arguido”. Conclui, por isso, que o MP fez uma “eventual perseguição” e não “uma investigação localizada”.

Por outro lado, lamenta que o MP, “estando em causa indícios de 109 crimes públicos”, tenha “desprezado os depoimentos que teriam contribuído para a investigação”, não tendo feito “qualquer outra diligência in situ”, além de inquirir os representantes das empresas visadas ou as entidades governamentais. “Como conferir qualquer eficácia probatória a este simulacro de investigação?” E conclui que a acusação do MP não prova a “falsidade das imputações e a consciência da falsidade por parte do arguido”.

Responde directamente às acusações de ausência de contraditório, feitas por Fernando de Oliveira:

"O livro (...) não foi dado à estampa sem ter sido dada às empresas visadas e ao partido no poder a possibilidade de, conhecedor dos factos recolhidos pelo arguido, o poderem contraditar ou porem cobro às condutas que tais factos revelavam. A 10 de Fevereiro de 2011 o arguido (...) [comunicou] previamente ao secretariado do bureau político do MPLA os dados recolhidos na Lunda-Norte para comunicação em relatório; o autor fê-lo também em ocasiões anteriores à publicação dos relatórios de 2005, 2006 e 2008 (...), deslocou-se à sede do MPLA onde foi recebido pelo então secretário para o bureau para a informação, Rui Falcão Pinto de Andrade (...). Na sequência do encontro, e conforme pedido pelo dirigente, o arguido enviou por email os casos referentes às FA, tendo sugerido também os casos referidos à Teleservice.”

São enumerados e descritos os encontros com a Endiama e Teleservice e um encontro promovido por Rafael Marques entre Linda Moisés e o director da Teleservice. 

"Apesar de estas diligências terem sido suficientemente relatadas no livro, o MP não se dignou aprofundar o inquérito sobre a falta de resposta das entidades abordadas e omitiu tais factos no seu relatório e que nunca foram contestados”, diz o advogado. 

O juiz mexe de novo nos processos. Dá então ordens à assistência e aos jornalistas para saírem. Durante o julgamento, Rafael Marques recebe 15 novas acusações de difamação, que se juntam às nove acusações por denúncia caluniosa – formando um total de 24. A defesa alega assim que nem os advogados, nem a defesa foram notificados dessas novas acusações.

Lá fora, na rua, uma dezena de activistas que estavam no tribunal explica-nos que veio apoiar Rafael Marques e reclamar liberdade de expressão em Angola. Dirigem-se depois para a rua, desfilam com um cartaz a dizer “Eu sou Rafael Marques/ Exijo Justiça”.

Juntam-se curiosos. Nas esquinas há mais polícia. Com a confusão do trânsito não percebemos bem o que acontece até ver Nito Alves, e a sua camisa amarela, a ser empurrado em braços por um grupo de polícias, à força, e mediante berros, a ser atirado para dentro de uma carrinha. Uma das activistas esbraceja face à tentativa da polícia de a agarrar, e a humilhação termina com a sua peruca no chão. Num vídeo que circula depois na Internet vê-se a jovem deitada noutra rua depois de ter desmaiado. Os jovens seriam depois libertados, ao contrário de outros activistas angolanos – como Arão Tempo, presidente do Conselho Provincial de Cabinda da Ordem dos Advogados de Angola, e José Mavungo, presos desde 14 de Março em Cabinda por convocarem uma manifestação, um caso que tem originado vários protestos, inclusivamente dentro da Igreja Católica.

Pela hora de almoço, as portas do tribunal estão fechadas. O julgamento é adiado para 23 de Abril. Dois dias depois, a 26 de Março, o tribunal abre as portas para outro caso de liberdade de expressão e condena oito réus implicados na morte de dois activistas – Isaías Sebastião Cassule e António Alves Kamulingue. Apesar de as condenações incluírem polícias e agentes de segurança, ficou por averiguar quem deu a ordem e quem no Governo sabia destas mortes. 

Já com o espaço do tribunal vazio, sem aparato policial, tentamos pedir informações à entrada da garagem. Do guichet os polícias informam-nos de que o tribunal fechou, sim. Espreitamos lá para dentro e um deles lê Diamantes de Sangue. O exemplar já tem um nome escrito a caneta na lombada, em letras grossas, como que a marcá-lo. Um dos colegas tenta roubar-lhe o livro. Disputam-no. Insistem com a jornalista: “Não tem um livro!? Dê-me um livro!”

Entretanto, várias organizações pediram a anulação das acusações contra Rafael Marques: Comité para a Protecção dos Jornalistas, organização americana de defesa de liberdade de imprensa, a Amnistia Internacional, a Transparência Internacional, a Freedom House, a Federação Internacional dos Direitos Humanos, a angolana Omunga.  

No dia seguinte, a rádio passa o som dos advogados de defesa e de acusação, o Facebook enche-se de fotos de Rafael Marques. O único diário do país, o Jornal de Angola, órgão oficial do Governo, dá ao caso um quarto de página, citando exclusivamente os argumentos do MP.

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