Ninguém quer dar como morta a trégua na Síria, apesar de ataque contra camiões de ajuda

Ataque contra coluna das Nações Unidas e Crescente Vermelho deixa 20 mortos e é o mais mortífero a atingir veículos de ajuda humanitária em cinco anos e meio de conflito.

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Um dos 18 camiões com ajuda destruídos no ataque desta terça-feira na Síria Ammar Abdullah/Reuters

Pode um acordo de cessar-fogo manter-se quando há tiros a ser disparados, bombas a cair, ou sobreviver a um ataque contra uma coluna de ajuda humanitária e um armazém, o mais mortífero deste género em cinco anos e meio de guerra na Síria?

Pela gravidade do ataque à coluna de veículos das Nações Unidas e Crescente Vermelho, que deixou cerca de 20 mortos incluindo o director local do Crescente Vermelho, parecia que não. Um responsável da ONU alertou que se houvesse provas de que foi deliberado, este ataque seria um crime de guerra. A ONU suspendeu de imediato o envio de ajuda – que, apesar de ser um dos maiores objectivos da trégua de uma semana, continua assim a não chegar. Mas mesmo assim, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, declarou que o acordo de cessar-fogo ainda vigorava.

O ataque pareceu sublinhar a incapacidade dos poderes mundiais em lidar com a guerra que não acaba na Síria, justamente no dia da abertura da Assembleia-geral da ONU em Nova Iorque, a última de Barack Obama enquanto Presidente dos EUA. O apelo ao fim da violência feito pelo secretário-geral, Ban Ki-moon (também esta é a sua última Assembleia-geral) pareceu quase vazio num dia que começou com um ataque a trabalhadores humanitários.

Os alvos foram um armazém usado pelas organizações humanitárias e uma coluna de 31 camiões que transportavam produtos de assistência urgente – alimentos, antibióticos, material cirúrgico – para 78 mil pessoas numa localidade cercada da província de Alepo. No ataque, 18 camiões ficaram totalmente queimados, grande parte da ajuda que levavam destruída. Morreram cerca de 20 civis, entre eles o director do ramo local do Crescente Vermelho sírio, Omar Barakat. “A equipa no terreno está em choque”, disse o responsável do Comité Internacional da Cruz Vermelha no Médio Oriente, Robert Mardini. “Omar ficou ferido com gravidade e a equipa de resgate levou duas horas a conseguir chegar a ele. Quando o levaram, já não conseguiu sobreviver aos ferimentos.”

As Nações Unidas dizem que o percurso da coluna foi partilhado com todos os intervenientes no conflito, e que os camiões tinham todas as autorizações necessárias. Acrescentam ainda que depois de receberem as primeiras informações de um ataque, começaram imediatamente contactos com todas as partes para que este parasse. Não parou. Ambulâncias não conseguiam chegar ao local, feridos ficaram sem ajuda. “Apesar dos nossos esforços e comunicação com as partes no conflito, houve mais ataques aéreos durante a noite, impedindo os esforços de chegar aos feridos”, disseram Massimo Diana e Kevin Kennedy, dois coordenadores de ajuda da ONU, um na Síria e outro na região, num comunicado. “O bombardeamento foi contínuo, contínuo. As equipas de resgate não conseguiam trabalhar” disse Hussein Badawi, do grupo de voluntários Defesa da Síria, ou “Capacetes Brancos”.

“Se se descobrir que este ataque teve deliberadamente como alvo humanitários, constituirá um crime de guerra”, disse o responsável do Gabinete de Coordenação Humanitária (OCHA) das Nações Unidas, Stephen O’Brien. “O ataque é uma violação flagrante da lei internacional e é inaceitável”, disse Peter Mauer, presidente do Comité Internacional da Cruz Vermelha.

Não vai haver solução militar na Síria

No seu discurso na assembleia-geral, Obama falou pouco da Síria. “Devemos prosseguir o intenso trabalho da diplomacia”, declarou. “Em sítios como a Síria, onde não há solução militar, vamos precisar de diplomacia”.

Em mais de cinco anos de confrontos, o Presidente norte-americano recusou sempre intervir significativamente na guerra, mesmo depois de ter traçado uma “linha vermelha”, a de ataques com armas químicas, que o regime de Bashar al-Assad ultrapassou. As hipóteses de que a sua Administração ainda consiga uma intervenção relevante no conflito parecem diminutas.

Os Estados Unidos reagiram fortemente ao ataque, dizendo que a Rússia não está a cumprir a sua parte do acordo, não controlando as acções de Bashar al-Assad. Moscovo negou entretanto que o ataque tenha sido aéreo – contra todas as descrições da Cruz Vermelha, países ocidentais e voluntários no terreno – e apontou o dedo aos rebeldes. As Nações Unidas, que tinham começado por caracterizar o ataque como um ataque aéreo, terminaram o dia a dizer que não sabiam ainda exactamente o que se passou.

“Tendo em conta a violação flagrante do fim das hostilidades, temos de reexaminar as perspectivas de cooperação com a Rússia”, disse um porta-voz de John Kerry. Um responsável norte-americano sob anonimato foi mais longe: “Os russos têm de demonstrar muito rapidamente a seriedade das suas intenções porque de outro modo não haverá nada para salvar”, cita a agência Reuters.

Quando o próprio John Kerry falou, depois da reunião dos 20 países que constituem o Grupo Internacional de Apoio à Síria à margem da assembleia-geral, o tom foi outro e o secretário de Estado dos EUA disse apenas: “o cessar-fogo não está morto”.

Esta enésima tentativa de acordo protagonizada pelos EUA e Rússia, que apoiam lados opostos no conflito tendo como inimigo comum os islamistas, era vista como uma acção desesperada e mesmo os envolvivos não esconderam o seu próprio cepticismo. Foi uma aposta arriscada numa maior cooperação entre os dois países numa altura em que a desconfiança é grande. Se fosse em frente, o acordo previa mesmo cooperação de partilha de informação para ataques coordenados contra os extremistas.

Já no sábado, um ataque dos Estados Unidos contra os combatentes do autoproclamado Estado Islâmico, acabou por matar 60 soldados sírios, levando Moscovo a acusar Washington de querer boicotar o cessar-fogo. Os EUA disseram que se tratou de um erro.

Ajuda em causa

Antes disso, a distribuição de ajuda era já um dos pontos do acordo que mais estava a custar pôr em prática, com os Estados Unidos a acusar o regime sírio de dificultar a missão das agências humanitárias e a pressionar publicamente a Rússia. Mais de 30 camiões esperavam na Turquia, prontos para avançar para Alepo, onde cerca de 300 mil pessoas estão cercadas pelas forças do regime em zonas controladas pelos rebeldes, desde o dia em que o acordo foi assinado. A última ajuda entrou na zona de Alepo em Julho, nas localidades cercadas falta tudo. Os mercados locais vendem pouco mais além de beringelas, salsa e outras ervas aromáticas, descreve a AFP, e conseguir pão é uma luta que implica horas em filas. “Estávamos a morrer com os bombardeamentos, agora vamos morrer à fome”, comentava Abu Ibrahim, 53 anos.

Habitantes que iam fazendo relatos do cessar-fogo mostravam como este já era especial: “Alguns civis que se tinham mudado para localidades vizinhas voltaram para casa”, contava ao New York Times Homam al-Asaad, 28 anos, de Saraqeb, Idlib. “As pessoas estão contentes com a trégua, e os que tinham adiado os seus casamentos estão a casar-se agora”, dizia. “Mas em termos militares ainda parece o mesmo: ainda há aviões a bombardear, as metralhadoras nunca páram durante a noite, os civis ainda conduzem com as luzes apagadas para não serem um alvo.” De Alepo, um activista anti-regime, Abdelkafi al-Hamdo, comentava: “Parece que metralhadoras, atiradores furtivos, explosivos disparados por tanques e muitas armas não estão incluídos no cessar-fogo”.  

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