Negociar em francês ou a “doença infantil” do "Brexit"

A “infantilidade” europeia veio ao de cima nalgumas atitudes completamente gratuitas. A última coube ao comissário francês Michel Barnier, que será o responsável pelas negociações e que resolveu anunciar que elas vão decorrer em francês.

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1. O Conselho Europeu da passada semana foi mais uma demonstração de que nenhuma das crises que constituem a crise europeia está em condições de encontrar um caminho de resolução. Como começa a ser hábito, os líderes europeus tentam afastar da agenda das cimeiras os problemas em que um acordo é impossível, procurando uma ou outra área de consenso que disfarce as divisões cada vez maiores. Desta vez, nem essa regra funcionou. Donald Tusk insistia em que o Brexit não estava na agenda. Pura ilusão. O Brexit é o elefante na sala de qualquer cimeira desde o referendo. Era a estreia de Theresa May. Obviamente que ocupou o devido espaço, dentro e fora da sala. E não foi propriamente um bom começo. O tom duro e ameaçador que cada lado da barricada resolveu adoptar não é mais do que uma tentativa para disfarçar que, de um lado e de outro, não há qualquer estratégia que faça sentido para tentar resolver com prudência e com visão esta separação extremamente difícil e extremamente danosa para ambas as partes.

May chegou a Bruxelas trazendo consigo os ecos do discurso que fez na Conferência dos tories, com uma linguagem extremista sobre os “estrangeiros” e a promessa de uma negociação “dura”. O que mais irritou os seus pares foi ter dito que, até à consumação da saída, estará sentada na mesa do Conselho Europeu com todos os seus direitos. Esta afirmação, que à luz dos tratados é bastante óbvia, foi entendida como uma ameaça injustificável de um país que não quer viver na União, mas quer influenciar a sua agenda como se vivesse. François Hollande, que lidera a cavalaria contra a Pérfida Albion, respondeu com a mesma moeda, desta vez acompanhado pela chanceler. May não teve um bom acolhimento, como se previa. O seu gabinete lembra, no entanto, que houve conversações amistosas com Paris e Berlim sobre a Rússia e sobre a Síria. Várias vozes têm sublinhado que a radicalização britânica teve o efeito raro de unir os outros 27, mesmo aqueles que, como a Holanda, estavam mais próximos de Londres. Não vale a pena ter grandes ilusões. Esta “unidade” pode não durar muito porque o mais provável é que cada país tente “negociar” o seu próprio acordo “bilateral” com os britânicos, porque os problemas não são todos iguais. Portugal, por exemplo, forneceu ao SNS britânico muita gente qualificada cujo destino quer garantir. O governo de May já anunciou que também quer “britanizar” os hospitais. O grau de loucura parece não ter limites. O primeiro-ministro holandês Mark Rutte, o melhor amigo de Cameron, juntou-se ao coro dos seus colegas por uma negociação “dura” e a razão é simples. Rutte vai enfrentar eleições a curto prazo e tudo o que não quer é ver um movimento pró-Nexit a contaminar o debate. Basta lembrar que Geert Willders, o líder do partido populista e xenófobo, ombreia nas sondagens com os liberais. Rutte já está metido em trabalhos, com o referendo que se lembrou de convocar para ratificar o acordo de associação da União Europeia com a Ucrânia. Os governos europeus teimam em não perceber que o referendo é a arma mais poderosa dos populismos, mesmo que a História esteja cheia de exemplos. 

2. Do lado de cá, digamos que a “infantilidade” europeia veio ao de cima nalgumas atitudes completamente gratuitas. A última coube ao comissário francês Michel Barnier (um homem ponderado), que será o responsável pelas negociações e que resolveu anunciar que elas vão decorrer em francês. Nem vale a pena lembrar que, em Bruxelas, a língua “comum” é o inglês. E não é pela saída do Reino Unido que a língua francesa vai retomar o espaço perdido nas últimas décadas. A segunda foi o Parlamento Europeu ter escolhido o antigo primeiro-ministro belga, o liberal Guy Verhofstadt, velho campeão antibritânico que continua a defender uma Europa federal (sem os ingleses, naturalmente) em que o Conselho Europeu seria o Senado e a Comissão o governo. É como pôr uma capa vermelha à frente do touro. Por mais bem-intencionado que seja, a Europa já não está aí há muito tempo e não foi culpa dos ingleses. No show-off francês para demonstrar que a expulsão da Pérfida Albion vai devolver a Paris o seu papel de liderança na Europa, já nem os franceses acreditam. 

3. E isso leva-nos ao fracasso do objectivo mais visível da cimeira, que toda a gente achava que ia correr bem: a aprovação do CETA, um acordo de comércio livre de última geração entre a Europa e o Canadá, que deveria ser assinado na próxima quinta-feira e cuja importância económica e estratégica é geralmente reconhecida. Seria, de resto, um sinal importante para mostrar que a Europa, o maior bloco comercial do mundo, estava a resistir à ofensiva proteccionista que ataca as democracias ocidentais (incluindo os EUA). Mais uma vez, é a obsessão pela democracia referendária, aqui com um novo formato: sujeitar acordos internacionais à vontade de uma região. As declarações emocionadas da ministra canadiana responsável pelas negociações, quando decidiu na sexta-feira regressar a casa, valem por mil palavras. Disse ela que não valia a pena ficar porque não lhe parecia que Europa estivesse “neste momento” em condições de assinar este (ou qualquer outro) acordo de comércio, mesmo quando se tratava de um país com os mesmos valores e as mesmas preocupações sociais e ambientais, como é o Canadá. A CETA representava, de algum modo, a antecipação do TTIP. NA CETA é a Valónia, no TTIP são alguns governos europeus, como o francês que já o deu como morto e enterrado. São muitos mais, felizmente, os que consideram que é preciso acelerar as negociações ao máximo, antes do fim da Administração Obama. Do ponto de vista económico, seria uma grande vantagem para os dois blocos. Do ponto de vista estratégico é ainda mais importante. Como diz Augusto Santos Silva, a centralidade do Atlântico Norte é fundamental para a Europa, em termos “económicos e políticos”, para equilibrar a viragem dos Estados Unidos para o Pacífico. A pressa está em que a campanha eleitoral americana revelou até que ponto há uma forte tendência para o proteccionismo na opinião pública americana, de que Trump foi a expressão máxima. Hillary já teve de fazer algumas cedências, deixando a defesa da abertura dos mercados sem verdadeiros defensores. 

4. Falta só dizer que é preciso um entendimento urgente sobre a Rússia. É verdade que a Europa não deve cair na armadilha da escalada que Putin montou. A sua última manifestação foi a passagem de uma frota naval liderada pelo porta-aviões Kuznetsov ao largo da costa inglesa, rumo ao Mediterrâneo Oriental e à Síria. As provocações sucedem-se para testar a resistência europeia e americana. Alepo, por quem já ninguém chora, é o retracto do nacionalismo agressivo de Putin. Não é fácil encontrar uma estratégia que evite a escalada, mas que não dê a ideia de que os europeus acabarão por se dividir e baixar a cabeça. Infelizmente, há hoje na cena política europeia cada vez mais amigos de Putin. Também aqui faltou um acordo embora se esteja ainda longe de uma cedência. 

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