NATO sai do Afeganistão em 2014, a guerra fica

Retirada militar faz temer aumento da violência e lança incerteza sobre os pequenos passos dados nos últimos 12 anos. Presidenciais de Abril serão a chave para a estabilidade do país.

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Houve pequenas grandes mudanças na vida dos afegãos: a economia cresceu em média 11% ao ano desde a in vasão ROBERTO SCHMIDT/AFP

O ano de 2014 representa uma transição para o Afeganistão. Em Abril, o país escolhe um novo Presidente, e mais do que um sucessor para o mal-amado Hamid Karzai é a estabilidade que se joga numa eleição que se prevê fraudulenta e conturbada. Por essa altura, milhares de soldados da NATO terão deixado já o país, numa marcha acelerada que deve estar concluída até Dezembro. Para trás, fica uma das mais longas guerras das últimas décadas e um Afeganistão diferente do que as forças especiais americanas encontraram em 2001. Mas também uma das nações mais pobres e instáveis do mundo, com um Governo tão frágil como são fortes os que o ameaçam.

As palavras são de Ahmed Rashid, o jornalista e analista paquistanês que é uma das vozes mais autorizadas sobre o Afeganistão: “De Washington a Cabul e em todas as capitais pelo caminho, os governos, os exércitos, as agências de informação e os media estão a perguntar-se sobre o que vai acontecer no Afeganistão no próximo ano, quando os EUA e a NATO forem finalmente embora após 12 anos de uma guerra que não venceram”. “Apesar da quantidade enorme de informação disponível, a verdade é que ninguém sabe, nem mesmo os afegãos”, escreve Rashid, num artigo para a revista Spectator.

Na verdade, não haverá uma retirada completa em 2014: apesar dos sobressaltos, o Governo afegão está a discutir um acordo de segurança com os EUA que pode deixar no país até 15 mil soldados (ver texto nestas páginas) e, mesmo que as negociações falhem, as operações especiais vão continuar no Afeganistão em missões contra a Al-Qaeda.

Mas termina o envolvimento directo da NATO na luta contra os taliban e será repatriado o pesado aparelho de guerra (blindados, helicópteros e aviões) que, à custa de milhares de mortos, negou à rebelião o controlo dos grandes centros. No caminho dos fundamentalistas ficarão apenas 350 mil soldados — com armamento modesto e treino desigual.

E se ninguém é imprudente ao ponto de repetir as palavras do primeiro-ministro britânico, que há duas semanas disse que os soldados vão regressar a casa com a “missão cumprida”, houve pequenas grandes mudanças na vida dos afegãos.

Os biliões de dólares de ajuda internacional ressuscitaram a economia, que cresceu à média de 11% ao ano desde a invasão. O investimento permitiu a construção de milhares quilómetros de estradas, foram criadas clínicas de saúde mesmo em zonas remotas e há mais sete milhões de crianças a estudar. As meninas, proibidas de ir à escola no regime taliban, são 40% dos alunos inscritos. Num país onde a televisão e a música eram proibidas, há 20 milhões de telemóveis e as empresas de comunicação são o maior empregador depois do Governo. As mulheres podem estudar, trabalhar e estão no Parlamento, na polícia, na sociedade civil.

Corrupção e ópio
Mas o dinheiro que estimulou a economia alimentou também a corrupção (a Transparency International coloca o Afeganistão entre os três países mais corruptos do mundo); a rebelião resistiu a todos os avanços e parece mais forte do que nunca (só na Primavera e Verão os taliban lançaram mais de seis mil ataques, que mataram dois mil polícias e quase tantos civis); a luta contra a produção de ópio foi um fracasso (a ONU diz que a colheita de 2013 foi a maior de sempre e representa já 90% da produção mundial) e o Afeganistão continua a ser um dos piores países para se nascer (25% das crianças morrem antes dos cinco anos).

E a retirada internacional — que conduzirá à saída de muitas ONG e à diminuição dos donativos — ameaça os pequenos passos dados. Isso é verdade na economia (a ajuda externa equivale a 100% do PIB afegão), na governação do país, ou nos direitos humanos, onde há já retrocessos: a lei para a eliminação da violência contra as mulheres foi descrita como “anti-islâmica” e continua por ratificar, os abusos cometidos pelas forças de segurança não chegam a tribunal e aumentaram os ataques contra mulheres em cargos públicos.

Apesar de preocupados com a insegurança, a corrupção, o desemprego, os afegãos olham ainda assim com optimismo para o futuro, revelou uma sondagem divulgada neste mês pela Asia Foundation. Mais de metade diz que o “país está a ir na direcção certa” e dois terços afirmam viver melhor do que em 2001.

O desafio das presidenciais
Também a Economist desdenha das previsões mais pessimistas, antecipando que os EUA deixem ficar um número de soldados “suficiente para garantir que o país não se desmorone”. Sublinha que, ao contrário o que aconteceu com a retirada soviética, em 1989, “deixam para trás um regime com uma certa medida de legitimidade popular”.

Rashid é menos optimista. Diz que as forças de segurança afegãs — 80% iletradas e com uma taxa de deserção que todos os anos atinge um quinto do contingente — não vão conseguir manter o território que agora controlam por mais de seis a 12 meses. Diz, no entanto, que o elemento mais crítico da transição serão as presidenciais, ainda sem data fixa mas previstas para Abril. “Se houver nem que seja metade das fraudes registadas em 2009, quando uma guerra civil foi evitada por pouco, a estabilidade futura do país torna-se incerta”.

Seth Jones, analista da Rand Corporation e autor de um relatório do Council on Foreign Relations sobre os desafios da retirada, diz que “há uma grande probabilidade de as eleições serem ensombradas por fraudes e corrupção substanciais”. Mas diz que, mais importante, será a reacção das várias comunidades (pashtuns, hazaras, uzebeques) aos resultados. “Se houver grande insatisfação ou oposição ao novo Presidente, o Estado pode desintegrar-se”.

Graeme Smith, analista do International Crisis Group a residir em Cabul, é mais optimista. Disse ao PÚBLICO que “todos os candidatos com hipóteses sérias de vencer pertencem ao sistema vigente e não estão interessados em alterá-lo de forma dramática”.

Um futuro estável, concordam todos, passaria por um empenho real nas negociações entre o Governo afegão e os taliban, após o início falhado no Verão. Em cima da mesa estariam cedências difíceis — os activistas temem, por exemplo, que os direitos das mulheres sejam sacrificados —, mas também a única garantia que o Afeganistão não se desmorona ou se torna de novo um campo de batalha para as potências regionais.

Rashid acredita que a liderança taliban quer negociar: estão cansados da guerra, querem regressar ao Afeganistão e “deixar de ser vistos como os cachorrinhos do Paquistão”. Já Smith diz que o incentivo às negociações desaparecerá com a retirada. “Na perspectiva deles, milhares de inimigos vão deixar o país e estão curiosos para perceber como vão ficar os equilíbrios depois.” Mas isso não torna uma negociação impossível, afirma, sublinhando que “os taliban de hoje não são necessariamente os mesmos de 2001”.
 
 
 

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