Natal copta celebra-se entre a esperança e o medo
A 7 de Janeiro e não a 25 de Dezembro, porque o seu calendário é juliano e não gregoriano, a maior comunidade cristã do Médio Oriente “sai do gueto” para exigir os seus direitos.
Hany Wahba, engenheiro eléctrico de 31 anos, estará neste domingo na Catedral de São Marcos, no Cairo, das 19h até à missa da meia-noite, para celebrar o Natal dos cristãos ortodoxos coptas, que se assinala a 7 de Janeiro. “Não temos muitos motivos para festejar, com um Presidente da Irmandade Muçulmana e uma Constituição que nos aproxima de um Estado Islâmico”, diz o jovem egípcio, numa entrevista ao PÚBLICO, por telefone. “Vivemos agora pior do que durante o regime de Hosni Mubarak”.
Apesar de tudo, Hany e o seu amigo, “mais religioso”, Mina Thabet, estudante de Engenharia de 24 anos, estarão juntos a rezar “pela salvação do Egipto”. Diz-nos Mina, líder do Maspero Youth Union, também por telefone: “Temos agora um novo Papa [Tawadros II] e queremos saber como podemos vencer o medo, que não é só da maior comunidade cristã do Médio Oriente mas de todos os egípcios.” Hany entristece-se quando lembra que muitas pessoas nem sequer lhe desejam Feliz Natal. “Muitos salafistas emitiram fatwas [éditos] que condenam à morte quem nos saudar dessa forma, porque isso é considerado um reconhecimento de que Jesus é mais do que um profeta – é muito triste!”
O Natal dos coptas ortodoxos – 10 a 20% dos 80 milhões de egípcios – não é celebrado a 25 de Dezembro como o de outros cristãos (incluindo os coptas católicos e protestantes, cerca de 800.000), porque eles ainda usam o calendário juliano, adoptado por Júlio César em 46 a.C., e modificado por Augusto, outro imperador de Roma, em 8 d.C.. Este calendário tem 365 dias, ao qual se acrescenta um ano bissexto, a cada quatro anos. Desse modo, deixou de ficar sincronizado, em 13 dias, com o calendário moderno gregoriano, promulgado pelo Papa Gregório XIII em 1582.
43 dias de jejum
O cristianismo egípcio remonta à fundação da Igreja de Alexandria, por São Marcos, em 43 d.C., o que faz dos coptas uma das mais antigas comunidades – liderada por uma hierarquia clerical distinta. Eles recusam-se a ser tratados como “minoria religiosa”, até porque a origem etimológica (e geográfica) de “copta” é “kpt”, o modo como os árabes pronunciavam a palavra grega Egipto (Aigyptos)
Os coptas rejeitaram o Concílio de Calcedónia, que impôs, em 451, o conceito de que “Cristo tem duas naturezas: uma terrena e outra divina”. Foram chamados de “monofisitas”, um termo que consideram pejorativo, classificando-se oficialmente como parte da “Igreja Ortodoxa Oriental”, na qual se integram também os arménios, os etíopes e os siríacos – mas não os ortodoxos gregos e russos, que cindiram do catolicismo posteriormente.
Todas as festividades coptas são precedidas de um período de jejum – o do Natal é de 43 dias, assinalando os 40 dias em que Moisés atravessou o deserto, com fome e sede, para receber os Dez Mandamentos. Mina Thabet, por exemplo, confessou que estava exausto porque desde 25 de Novembro não comia carne, peixe, ovos e lacticínios, de manhã até ao início da noite, ainda que precisasse de estudar intensamente para o último exame na universidade, a 1 de Janeiro.
Só neste domingo, 6 de Janeiro, fim do Advento, à meia-noite, quando começa o Natal, ele quebrará a abstinência, “para receber, sem mácula, o corpo e o sangue de Cristo”. Irá também saborear um pão especial que é distribuído pelos fiéis, durante a Eucaristia; chama-se Qurban, tem uma cruz ao meio e está rodeado por 12 estrelas, que representam os 12 apóstolos de Jesus.
Na casa de Mina e de Hany há “algumas decorações natalícias, como velas e árvores iluminadas”, mas os coptas “não têm a tradição ocidental de trocar presentes”, embora algumas crianças recebam uma pequena quantia de dinheiro (el’aidia), para comprarem doces, brinquedos ou gelados, explica Thabet. “Todos se vestem com roupas novas, sim, e depois da missa reunimo-nos com a família e os amigos, em casa, parques, cinemas – mas só depoisde comermos fatta, um prato à base de arroz e carne.”
Direitos e não caridade
Hany e Mina, ainda que ansiosos pelas celebrações, não escondem também as preocupações. “Os coptas, em particular, e a maioria dos egípcios, em geral, vivem apavorados”, frisa o primeiro. “Temos de mudar este país, por isso me inscrevi em várias organizações da sociedade civil e políticas. O presidente, Mohamed Morsi, está há seis meses no poder e ainda não nos deu nada. Talvez precisemos de outra sublevação. Não gosto que me despejem numa segunda classe. Ser copta é a minha religião, mas não me define como cidadão e, como cidadão, eu exijo os meus direitos.”
Inquirido sobre qual o seu melhor Natal, Mina Thabet hesita na resposta. “Só me lembro do pior: em 2011, quando uma igreja em Alexandria foi atacada. Morreram 24 pessoas, a maioria mulheres e crianças. Foi uma tragédia; um dos piores crimes contra os coptas. Este ano, espero que seja melhor; já é especial por termos um novo Papa, e depois porque acredito que Deus me ajudará nesta nossa luta por um país melhor.”
Mais céptico, Hany Wahba lamenta: “As tensões confessionais sempre existiram, mas nunca a impunidade foi tão ostensiva. “Há cada vez mais ataques pessoais e contra igrejas (“pelo menos 16 foram incendiadas”), além de expropriação de bens e a proibição, que vem do tempo de Mubarak, de construir novos lugares de oração.” Hany não esquece, em particular, o chamado “massacre de Maspero”, cometido em 9 de Outubro de 2011. Nesse dia, forças de segurança mataram 27 coptas e feriram mais de 300, quando protestavam contra a destruição de um templo no Alto Egipto. “Exames forenses mostraram que pelo menos 14 pessoas foram esmagadas por carros de combate e as restantes foram mortas por munições reais, mas o tribunal arquivou o processo por ‘falta de provas’ para punir os culpados”, critica Hany. “Se eu tivesse a certeza de que arranjaria emprego no estrangeiro, já não viveria aqui; estou [cá] porque tenho de zelar pela minha mãe e pela minha irmã.”
O destino de Hany seria os Estados Unidos, onde o número de coptas que deixam o Egipto, fugindo da perseguição e da crise económica, aumentou cerca de 30%. Aos 350 mil que já viviam na América antes da revolução, juntaram-se mais 100 mil, segundo a emissora pública de rádio, a National Public Radio (NPR). Muitos chegam com vistos de turista e depois pedem asilo político, concentrando-se sobretudo em Nova Iorque, Nova Jérsia e Sul da Califórnia. Muitos dos que abandonam as suas casas já não são apenas os da classe média e das cidades, mas também os menos cultos e mais pobres das zonas rurais.
Os egos dos líderes
Hany Wahba pertence à classe média. Frequentou uma universidade católica privada onde, garante, nunca foi alvo de abusos físicos ou verbais, “mais frequentes nas escolas públicas”. Um revolucionário orgulhoso, foi dos primeiros coptas a desobedecer ao Papa Shenouda III e a ir para a Praça Tahrir, exigir a queda de Mubarak. Esteve “em todas as manifestações” contra o Conselho Supremo das Forças Armadas, quando este era liderado pelo temível marechal Tantawi. “Foi um período curto em que muçulmanos, cristãos, baha’ís e outros tinham como objectivo a unidade. Mas depois, face à irresponsabilidade do Ministério do Interior e de alguns pregadores salafistas, que encorajam os criminosos, a paz nacional tornou-se uma miragem.”
Co-fundador da Aliança Socialista Popular, “um partido não religioso em que os muçulmanos constituem a maioria dos membros”, Hany tem a certeza de que “os coptas estão a sair do gueto” em que Shenouda os colocou, “como forma de os proteger”. Os cristãos, frisa, “têm de deixar a religião para a Igreja, e a Igreja tem de se afastar da política. São os crentes que têm de se integrar nas diversas forças políticas como cidadãos”. Por isso, a sua Aliança é uma das componentes da Frente de Salvação Nacional, da qual fazem parte também os grupos de Mohamed ElBaradei, antigo director da agência da ONU para o nuclear, e Amr Moussa, ex-secretário-geral da Liga Árabe.
Hany reconhece que a oposição tem estado dividida, “devido aos muitos egos dos líderes”, mas acredita que após a aprovação da nova e polémica Constituição em referendo (cerca de 60% votaram a favor mas pouco mais de 30% foram às urnas), “há agora maior vontade de superar as divergências, e enfrentar em conjunto a ditadura absoluta da Irmandade Muçulmana.”
Alguns dos partidos da Frente já decidiram concorrer numa mesma lista nas próximas eleições legislativas, o que, para Hany, “tem vantagens – como uma melhor estrutura logística, que permita chegar às zonas mais conservadoras; e desvantagens – como correrem o risco de a votação ser apresentada como uma escolha entre os que estão a favor e contra Deus”.
Morsi e Mubarak, políticas iguais
“A situação económica é dramática e a política de Morsi não é diferente da de Mubarak, porque depende das ordens do Fundo Monetário Internacional, que está a exigir aumento de impostos e de preços dos alimentos, e também a desvalorização da moeda nacional”, salienta Hany. “Acho que nem o ditador deposto se atreveria a fazer isto, porque isto só aumenta a pobreza e a revolta!”
Tendo já provado as medidas amargas de Morsi, será que os egípcios voltarão a dar à confraria do Presidente e aos salafistas a maioria que detinham no Parlamento anterior, dissolvido pelos militares? “Talvez não, mas temo que a reacção popular, apesar do desapontamento, seja de apatia; e uma forte abstenção, a par de inevitáveis fraudes, será muito má para a oposição, se esta não aproveitar a oportunidade. É preciso ir aos redutos dos islamistas e informar as pessoas mais ignorantes de que não podem continuar a viver das esmolas dos Irmãos Muçulmanos; têm de exigir que o Estado lhes dê os seus direitos, e esses direitos são escolas ou clínicas, que não podem ser oferecidas como caridade.”
Menos devoto do que Mina Thabet, embora nunca tenha faltado a uma missa de Natal, Hany Wahba está nervoso: “As igrejas estão todas sob forte protecção policial, devido às ameaças que têm sido feitas. Talvez o Governo envie algum representante à catedral; e admito que ElBaradei e Moussa também estejam presentes, porque não têm nada a perder.” Quanto a si próprio, revela que o melhor Natal foi o que antecedeu o fim da licenciatura: “Tinha uma namorada naquele ano, e tudo parecia tão fácil.”