"Não sei por que acham que a Frente Nacional é racista"

O partido liderado Marine Le Pen reformulou-se e há sondagens que lhe dão o primeiro lugar nas europeias em França. Em campanha, os seus candidatos garantem que daqui a dois anos já não há euro.

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Talvez não tanto aqui, onde vive, na sala com vista para o Vieux Port. Talvez mais em zonas mais multiculturais. Dá um exemplo de um minidiálogo com uma pessoa que o interpelou numa dessas zonas, olhando para uma mulher com véu: “‘Já viu isso?’ e eu respondi, ‘O que tem?’ e a pessoa insistiu ‘Isso não o incomoda?’ e eu disse ‘não, pas du tout’. E ela respondeu ‘então é porque tem peles de chouriço à frente dos olhos’”, uma expressão colorida (como só em Marselha) para descrever alguém que não quer ver algo que está à sua frente. 

Isto para dizer: falar abertamente mal dos estrangeiros é algo aceite. Mesmo quando é uma cidade em que não se sabe bem quem é estrangeiro, porque há muitos franceses de origem estrangeira que podem parecer vindos de fora mas não são.

Tudo isto o faz voltar atrás no tempo. “Quando eu tinha dez anos, era isso que se ouvia dizer dos judeus”, nota Olive, calmamente. “Mais de 60 anos depois ouço a mesma coisa. É como se houvesse uma trama que se repete”, diz, e não há como não notar a nota de angústia.

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Auguste Olive Joana Bourgard

Esta desconfiança e rejeição existe também entre os franceses de origem estrangeira, ou mesmo entre estrangeiros. Olive conta o caso de uma vietnamita que se queixava “destes árabes todos”. “Os estudos mostram que os últimos a chegar são os mais hostis.”

A Frente Nacional capitaliza com este sentimento e contribui para ele. Fechar é a palavra de ordem. Fechar ao mundo, fechar à Europa. Dar segurança aos franceses; algo que tem bastante eco em Marselha, onde ninguém pára na passadeira e toda a gente é aconselhada a andar com a mochila à frente para evitar ser assaltado.

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Vieux Port, Marselha Joana Bourgard

Segundo a última sondagem do centro Poll Watch, o partido pode mesmo ganhar as europeias: surge em primeiro lugar com 23,5% das intenções de voto, o que lhe daria 22 lugares (a União para um Movimento Popular, na oposição, surge logo atrás com 22,5%, e o Partido Socialista apenas com 18%).

A mudança de imagem levada a cabo por Marine le Pen contribuiu para isto. Os seus apoiantes dizem que querem apenas proteger a França. Mas não são – nem pensar – racistas. “Não sei de onde tiraram essa ideia”, diz-nos Marvin Mittaine, um chef de cozinha de 29 anos. “A minha mulher é russa.” Mittaine, que se apresenta como sendo “da nova geração da Frente Nacional” enquanto distribui panfletos de campanha em Marselha, quer apenas ver França referendar o euro e proteger as suas fronteiras.

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Joana Bourgard

Quando visitámos Marselha, a cidade estava em plena campanha para as eleições municipais (o presidente da câmara manteve-se, mas a Frente Nacional conseguiu uma onda de bons resultados por toda a França). Como fazer campanha por um partido destes numa cidade tão multicultural como esta, em que tantos, mas tantos, habitantes têm claramente raízes noutros países, noutros continentes? Mittaine não evita pessoas com outras cores de pele – seria evitar uma grande parte das pessoas que passam. Obtém várias recusas, uma ou outra pessoa aceita quase parando quando percebe o que é, outras aceitam sem mostrar grandes emoções.

Dominique Demeester
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O euro vai acabar em dois anos
As reacções mais contrariadas à campanha da Frente Nacional não vêm destas pessoas, mas sim de franceses brancos. De uma jovem de óculos de massa que passa e quando percebe qual é o partido espeta um indignado dedo do meio. Do homem mais velho de boina e casaco de malha, que está prestes a aceitar o folheto, mas congela o gesto quando percebe o que é. Levanta a mão em recusa polida mas firme, e continua.
Mas por cada reacção de desagrado, há pessoas que aceitam o folheto e há pessoas muito interessadas no que o candidato municipal tem para dizer. Mesmo sendo eleições municipais, a Europa é um tema.

“Concordo que todos os partidos são parecidos, mas a verdade é que quando chegam lá não podem fazer nada por causa da União Europeia – mesmo com a Marine le Pen seria a mesma coisa”, diz uma cidadã numa animada conversa com Dominique Demeester, um homem num fato quadrado, físico compacto de anos como gendarme, e que era o cabeça de lista do primeiro sector da cidade. “Quem quer que seja, seria manietado pela Europa”, diz. Demeester tem resposta pronta: “Todos os peritos dizem que daqui a dois anos já não vai haver euro, a União Europeia vai-se desintegrar. Não precisa de se preocupar.” Ela aperta-lhe o braço, e diz com uma intensidade que até parece que estamos a falar de algo que não política, antes de ir embora: “Oh, prometa! Dou-lhe dois anos. Só lhe peço isso!”. Ele assente, está prometido.

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Bertrand Guéry, director da Osiris Joana Bourgard

Dupla radicalização
Do centro de Marselha até ao escritório da associação Osiris vai um mundo. O taxista pergunta preocupado se estamos a pensar passear por ali – não é boa ideia, avisa. 
As ruas não parecem perigosas, apenas diferentes. Café após café, só há homens. As referências femininas resumem-se a uma mulher a servir um café turco, uma música de Beyoncé a sair dos altifalantes.

Entra-se numa pequena rua perpendicular e num centro dos Médicos do Mundo, na sala de espera, olhos brancos do contraste com a pele escura. No primeiro andar está um gabinete da Osiris, que faz um trabalho muito especial: recebe e presta cuidados especializados a pessoas vítimas de tortura. 

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Escritório de Bertrand Guéry Joana Bourgard

Bertrand Guéry, director da organização (há apenas cinco centros destes em toda a França), nota que este trabalho é feito “num contexto complicado, em que a sociedade não leva em conta a situação das vítimas de tortura”, diz. Fala-se muito em imigração, em imigração económica… Mas nestes casos as vítimas fugiram de situações de grande sofrimento. “Procuram não só um novo sítio para viver, como um reconhecimento do que sofreram.” Nem sempre é isso que encontram. Em 2013, o país recusou 83% dos pedidos de asilo (de 61455 pedidos de asilo, apenas acolheu 10470 refugiados).

Aqui, na Osiris, metade do trabalho é ouvir e reconhecer. As sessões de psicoterapia são sempre mediadas por um intérprete (já que 90% das pessoas que aqui chegam não falam francês). Há 27 nacionalidades representadas, há albaneses do Kosovo, curdos da Turquia, opositores tchetchenos, da República Democrática do Congo, Nigéria…A única vez que foi preciso um intérprete português foi para um angolano. Chegou, contou a sua história – “vomitou” é a palavra que Guérin usa –, e desapareceu. Os terapeutas acham que precisava de ser ouvido.

Enquanto alguns refugiados chegam a França por acaso, outros chegam com uma ideia de que este é um país defensor de direitos humanos. Mas esta imagem “não corresponde à realidade”, nota Guéry. E com o aumento do discurso anti-estrangeiros, tudo piora. “A subida da Frente Nacional afecta-nos e aflige-nos”, diz Guéry. O que está a acontecer é uma dupla radicalização, explica. Das vítimas que chegam e não sentem reconhecimento, “e o não reconhecimento é algo de muito violento”. De quem vive cá que sente que se estão a formar guetos. Uma desconfiança de cada lado em relação ao outro que só se está a agudizar. Faltam espaços comuns, linguagens comuns. 

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Mercado em Marselha Joana Bourgard

Em termos europeus, diz Guerin, é preocupante que não haja solidariedade para a imigração; “há apenas para os impedir de chegar.” (Isto quando, nota, a maioria dos refugiados do mundo não estão na Europa nem nos EUA – segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados, mais de 80% dos refugiados do mundo estão em países em desenvolvimento, uma percentagem que tem vindo a aumentar – há dez anos era 70%).

E Guérin nota um exemplo de disfuncionalidade no funcionamento da Europa: “Na União Europeia perde-se mais tempo a discutir verbas menores do que projectos que envolvam quantias maiores.”

Esta é a segunda de onze paragens na Europa que vai a votos. Amanhã, Milão.

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