"Não se pede o passaporte quando há um naufrágio iminente"

Laura Boldrini preside ao Parlamento italiano, eleita por um partido de esquerda radical. Acredita que só há uma resposta para os problemas europeus: maior integração política. Tem um olhar muito critico sobre a forma como a Europa está a lidar com os refugiados.

Foto
Laura Boldrini preside ao Parlamento italiano Miguel Manso

Laura Boldrini preside à Camara Baixa do Parlamento italiano desde Março de 2013. É independente nas listas da Esquerda Ecologia e Liberdade de Nichi Vendola, um partido de esquerda radical ainda que europeísta. Veio a Lisboa numa missão que se atribuiu a si própria há já alguns meses: recolher o apoio dos presidentes dos parlamentos nacionais para uma proposta conjunta na defesa de mais integração europeia. Levou a assinatura de Ferro Rodrigues, mas já tem bastantes mais, incluindo a do presidente do Bündestag. Afasta com veemência todos os argumentos que contrariam esta solução, incluindo o crescente desalento dos cidadãos europeus. Não acredita que o acordo com a Turquia funcione, mas lembra que a culpa é, em primeiro lugar, dos países que não quiseram aceitar uma distribuição equitativa.

Foi porta-voz do ACNUR até 2013. Pensa que este acordo entre a Europa e a Turquia é uma boa solução?
Começo por lhe dizer que não é um bom acordo. Porque, basicamente, não resolve o problema e compromete os valores fundamentais da Europa. Cria mais problemas do que soluções. É verdade que, desde que foi feito, o número dos que tentam chegar às ilhas gregas diminuiu. Mas a União, a partir do momento em que não encontrou um acordo entre os 28, decidiu delegar a gestão da crise dos refugiados a um país terceiro. E isto é um sinal de fraqueza. A Turquia tem hoje 2,7 milhões de refugiados no seu território. Não assinou o protocolo de Nova Iorque de 1967 [adenda à Convenção de Genebra, generalizando o conceito de refugiado, de início apenas para os europeus], o que significa que não reconhece como refugiados os que não vêm da Europa. Parece difícil de acreditar mas é assim. Por isso, não tem o enquadramento legal para pôr em prática uma tarefa desta dimensão, que lhe foi dada pelos países europeus. Parta mim, isto é uma sombra sobre a reputação europeia.

Foi em primeiro lugar uma iniciativa de Angela Merkel para resolver as pressões internas contra a sua política de portas abertas?
Foi proposto pela chanceler Merkel mas foi assinado por todos os outros. Cada um deles tem de assumir as suas responsabilidades. Também é verdade que a Alemanha, só no ano passado, recebeu quase um milhão de refugiados. E a verdadeira razão do acordo foi porque nem todos os Estados-membros quiseram assumir a sua responsabilidade. Se os 28 tivessem aceitado o que foi sugerido pela Comissão [uma grelha de distribuição], não teríamos tido uma crise. Além disso, esta crise está sobre os ombros de apenas cinco países: Grécia, Itália, Alemanha, Suécia e Áustria.

Mas a Áustria acaba de aprovar uma nova lei de asilo muito mais restritiva do que a anterior…
Temos de ser justos. É um país pequeno em que o número de pedidos de asilo no ano passado atingiu os 80 mil. Em percentagem, é o mesmo que a Itália receber 600 mil. É muito. Se todos os outros tivessem feito o que era suposto fazerem, não haveria esta crise. Espero que a Comissão consiga encontrar os instrumentos necessários para forçar os países-membros a cumprir.

O Governo de Matteo Renzi apresentou algumas propostas novas: apoio financeiro aos países de África que também estão na origem desta vaga de imigração; uma força naval EU/NATO para combater os traficantes a partir da Líbia; o financiamento da ajuda aos países de origem através de eurobonds. Vai ser ouvido?
Temos de distinguir duas categorias. Temos dois fluxos distintos a chegar a Itália. Um primeiro é sobretudo de refugiados fugidos da Síria, Iraque, Afeganistão.

Eritreus…
Sim, somalis, eritreus, nigerianos mas também de muitas outras nacionalidades. Temos de começar por perceber as razões pelas quais eles vêm, porque são duas realidades diferentes. A primeira é resolver as causas profundas que são as guerras, a violação dos direitos humanos e a perseguição política. Do outro lado, temos a pobreza e o subdesenvolvimento. O remédio não pode ser o mesmo. Se se tratar de subdesenvolvimento, temos de aumentar as ajudas a estes países e, nesse caso, os “Africabonds” fazem sentido, mesmo que reconheça que é muito difícil. Quando a razão é a guerra e o terrorismo temos de aplicar medidas diferentes e temos de relançar as negociações para a paz a nível político, cortar o financiamento dos terroristas, convencer alguns países a aceitar um embargo de armamento e não podemos comprar petróleo dos territórios ocupados pelo Estado Islâmico.

Como sabe, essa ideia de apoiar os países pobres da África subsariana já anda a ser defendida há dez ou 20 anos sem grandes resultados.
E sabe o que eu lhe respondo? Se não conseguirmos estabilizar esses países, esses países acabarão por nos desestabilizar a nós. Temos necessidade de uma espécie de Plano Marshall para a África. Por outro lado, temos também de investir na prevenção e na resolução de conflitos, incluindo os conflitos que já deixaram de estar nas notícias, mas que criam grandes deslocações de pessoas. É impossível à Europa ver-se como um pequeno enclave que pode viver fora do mundo.

Que papel podem ter os navios da NATO contra os traficantes, se estes abandonam os barcos logo que saem das águas territoriais?
Como se lembra, a NATO esteve lá em 2011 e o seu papel não foi enviar as pessoas de volta, porque isso é contra as leis internacionais. Além disso, não se pode impedir que os que procuram asilo cheguem cá. Seria contra a Convenção de Genebra. As pessoas têm de ser resgatadas no mar, é esta a lei. Não se pede o passaporte quando há um naufrágio iminente. Não se pergunta a nacionalidade. Salvam-se as pessoas ponto final. Só depois podem ser identificadas, para saber se são refugiados ou não. Mas antes de tudo, é preciso salvá-las e é isso que o meu país tem estado a fazer há bastantes anos, digo-o com orgulho. Primeiro sozinho, agora com os nossos parceiros, numa operação conjunta e num esforço conjunto. No ano passado morreram no Mediterrâneo três mil e setecentas pessoas…

Só na semana passada foram cerca de 500 e parece que ninguém ligou.
Eu sei. Mesmo neste ano, o número continua a ser muito alto, mesmo com imensos navios na zona. Em qualquer caso, o que é preciso garantir é que não haja uma só medida que vise empurrar as pessoas de volta. A lei internacional não o permite.

Toda a gente percebe que é preciso uma política comum de asilo, mas assistimos ao movimento oposto.
Exactamente. Essa é a resposta. Foi o que eu vim tratar aqui a Lisboa, com esta Declaração que já tem a assinatura dos presidentes dos parlamentos alemão, francês, luxemburguês, italiano, português… O que ela diz é que a única resposta é mais Europa.

O problema é que essa resposta que está a perder apoio nas opiniões públicas europeias, como se vê na Áustria, onde a extrema-direita ganhou a primeira volta das presidenciais e remeteu os dois grandes partidos que a governam desde 1945 para valores irrisórios.
Estão errados porque não perceberam o desafio. As eleições serão ganhas pelos partidos anti-imigrantes, mesmo que os partidos democráticos ergam barreiras. Perdem a sua identidade e perdem as eleições. A resposta é avançar com mais integração política, é criar, se quiser, os Estados Unidos da Europa. Não podemos ter uma política comum de asilo que mencionou sem maior integração politica.

Como é que se pode mudar a percepção negativa dos europeus contra os imigrantes e os refugiados?
As pessoas acreditam que os imigrantes concorrem com eles para encontrar trabalho. Como temos níveis elevados de desemprego, ninguém quer partilhar os poucos recursos que ainda tem. Temem também que concorram com eles no acesso às escolas, aos serviços públicos. Temos de lhes explicar que um milhão de pessoas dispersas numa população de 500 milhões é 0,2. Praticamente nada.

O seu primeiro-ministro tem sido uma espécie de troublemaker que vai dizendo algumas verdades. Acha que alguém o ouviu?
O segredo para as mudanças é a capacidade de fazer alianças. Isso significa que é necessário o apoio de outros países e instituições que querem a mesma coisa. Volto a esta Declaração, porque a ideia nasceu em Roma em Setembro passado, com quatro presidentes dos parlamentos: Itália, Luxemburgo, França e Alemanha. Hoje, com a assinatura de Ferro Rodrigues, já somos 12. Precisamos de construir alianças se queremos obter resultados. Estamos preparados para partilhar soberania e queremos uma política económica que preste atenção aos seus impactes sociais. Ou seja, queremos uma política económica diferente. Temos algumas assinaturas fortes, como a alemã ou a francesa.

Dos parlamentos e não dos governos.
É verdade mas penso que esta é a abordagem certa, que deve ser reproduzida em todos os níveis, dos governos aos cidadãos. Os cidadãos têm de estar envolvidos nestas mudanças. Renzi está certo quando diz que a política económica tem de mudar, mesmo que nada mude entretanto. Não se mudam as coisas de um momento para o outro.

Matteo Renzi prometeu uma reforma por mês quando chegou ao poder. Mas insistiu muito nas reformas políticas, da lei eleitoral à redução dos poderes do Senado. Como é que vê estas reformas?
São reformas importantes, mas há outras que estão a ser feitas e que eram bastante controversas: a reforma das leis laborais, da administração pública, da educação… Mesmo as institucionais, todos concordam em que são precisas mas discordam da forma como devem ser feitas.

As reformas institucionais pretendem mudar a forma como a Itália se governa a si própria, melhorando a estabilidade e a eficácia. Vão resultar?
Esse é o racional que está por trás delas. Mas nem todos os partidos estão de acordo. Fizemos a reforma do Senado, que tem hoje 315 senadores e que passará a ter apenas 100, não eleitos directamente mas representando as regiões. Alguns partidos dizem que é uma redução da democracia, quando se perde a oportunidade de eleger os nossos representantes. O debate continua e, depois, vamos ter o referendo no Outono. O que eu defendo é que o debate deve ser sobre a substância destas reformas e não sobre o primeiro-ministro. Renzi disse que, se perder o referendo, põe fim à sua carreira. Não é esta a questão central. E espero que os media percebam isso.

Esta preocupada com a possibilidade de um "Brexit"?
Sim. Porque acredito que pode ser o princípio do fim.

Da União Europeia?
Sim. Mas, por outro lado, devemos estar também preocupados com as medidas que o Reino Unido negociou para justificar a sua pertença. Pela primeira vez, aceitou-se que o princípio de não discriminação aplicado a todos os cidadãos europeus fosse alterado. E isso é muito mau. É melhor mantê-los dentro mas, se votarem para ficar, temos de estar atentos às excepções. Também não devemos pensar que temos de avançar todos juntos. Pode haver um grupo de Estados-membros que querem avançar para a integração política e outros que são livres de não o fazer. Mas temos de manter a perspectiva de que se pode e deve avançar antes que seja tarde demais.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários