Não se combate o terrorismo com poderes excepcionais

Existem boas razões para pensar que o uso do estado de urgência não é a melhor forma de combater o terrorismo.

A declaração do estado de emergência em França, no dia 14 de Novembro, foi seguida, alguns dias depois, de um apelo de François Hollande à necessidade de rever algumas normas da constituição de maneira a adaptar os poderes excepcionais a “uma guerra de um outro tipo”. Nessa mesma semana, a Assembleia e o Senado votaram a prolongação do estado de emergência durante mais três meses. Uma medida que, segundo várias sondagens, é aprovada pela esmagadora maioria dos franceses. Mas o que é o estado de emergência?

Para perceber em que é que consiste este estado de emergência talvez seja útil de começar por dizer aquilo que ele não é. O estado de emergência não deve ser confundido nem com o estado de excepção nem com o estado de sítio. Ao contrário do estado de emergência, o estado de excepção do artigo 16 da constituição francesa permite ao Presidente da República tomar todas as medidas que ele julgue necessárias para fazer face às situações que constituam uma ameaça particularmente grave às instituições, à independência da nação, à integridade do território e aos compromissos internacionais. Por sua vez, o estado de sítio do artigo 36 permite, em caso de guerra ou insurreição armada, transferir os poderes de manutenção da ordem pública, normalmente nas mãos das autoridades administrativas, à autoridade militar. Este regime prevê ainda a possibilidade de suspender alguns direitos e liberdades e a extensão da jurisdição militar a alguns crimes cometidos por civis.

O estado de emergência prevê, por sua vez, um número limitado de poderes que podem ser utilizados pelas autoridades em caso perigo iminente resultante de violações graves à ordem pública ou em caso de calamidade pública. Segundo o projecto de lei adoptado na semana passada, que não prolonga apenas o estado de emergência como modifica o seu regime, as autoridades podem, entre outras medidas, efectuar buscas domiciliárias a todo o momento sem autorização prévia de um magistrado, extinguir grupos e associações que facilitem, incitem ou participem em actos que ponham em causa a ordem pública e bloquear endereços electrónicos dessa natureza. Mais ainda, todos aqueles que o Ministro do Interior considerar que constituem, pelo seu comportamento, uma ameaça à segurança e à ordem pública podem ser obrigados a permanecer até 12 horas por dia em domicílio. Esta mesma pessoa pode ser ainda sujeita a outras medidas como, por exemplo, a apresentação obrigatória numa esquadra de polícia até três vezes por dia, a interdição de qualquer tipo de contacto com outras pessoas também consideradas como uma ameaça, a entrega dos seus documentos de identificação e, o mais curioso, no caso de já ter sido condenada por terrorismo, esta pessoa pode ser “convidada” a utilizar uma pulseira electrónica. A violação de uma destas medidas constitui uma infracção que pode dar lugar a uma pena de prisão de um a três anos de prisão. Digamos que o trabalho das autoridades fica facilitado. É mais obter a condenação de alguém porque violou uma destas medidas que provar que esta pessoa cometeu um crime de terrorismo.

Apesar das diferenças, estes três “regimes de excepção” – estado de excepção, estado de sítio e estado de emergência – partilham, pelo menos, três coisas: eles implicam uma concentração/transferência de poderes, uma restrição severa ou suspensão de alguns direitos e liberdades mas apenas durante um tempo limitado. Ou seja, uma vez terminada a situação que justificou o seu uso, o equilíbrio de poderes e os direitos e liberdades que foram alvo de uma restrição devem ser plenamente restabelecidos. É óbvio que este tipo de regimes só faz sentido em sistemas políticos onde o poder está sujeito a restrições. Imaginem um sistema onde o governo tem o dever de assegurar o bem comum da maneira que lhe parece mais adequada: as autoridades poderiam agir durante as situações de urgência e as situações não urgentes exactamente segundo o mesmo princípio segundo o qual “o bem comum é a lei suprema – e a única”. Mas convém sublinhar que nenhum destes regimes de excepção de que aqui falei autoriza um poder absoluto. Em sistemas políticos onde o poder é limitado, mesmo aquilo que pode ser feito durante as situações de urgência tem limites.

Dito isto, existem boas razões para pensar que o uso do estado de urgência não é a melhor forma de combater o terrorismo. O uso dos regimes de excepção só é justificado para fazer face a ameaças pontuais e que a podemos pensar que vamos por um fim. Uma rápida análise mostra que o terrorismo não parece constituir uma ameaça desta natureza. Pelo menos desde o fim do século XIX que podemos constatar a existência de vagas sucessivas de diferentes tipos de terrorismo internacional. Depois, o desmantelamento de uma organização terrorista não garante que outras, com as mesmas ou outras motivações ideológicas, não se vão se formar posteriormente. Por exemplo, a França foi alvo dos movimentos independentistas a partir dos anos 70 e, mais tarde, a partir dos anos 80, também dos movimentos de esquerda radical. Ao momento em que estes grupos começaram a perder força outros emergiram: em 1995 o Grupe Islamique Armé fez explodir várias bombas em Paris causando oito mortes e duas centenas de feridos. Uma outra dificuldade é o facto de que, ao contrário das situações de guerra ou rebelião, mesmo neutralizando a actual campanha terrorista, é sempre difícil saber ao certo exactamente quando é que ela acabou. O terrorismo pode parecer uma ameaça fora do normal mas seria um erro de pensar que não podemos combatê-lo sem renunciar às liberdades ou pôr em causa o princípio de separação de poderes. É possível desenvolver um dispositivo permanente e eficaz de luta contra o terrorismo compatível com os princípios de Estado de direito. Estes argumentos mereceriam ser acompanhados de uma demonstração mais desenvolvida, mas convido o leitor a ler o artigo onde eles foram inicialmente avançados. [1]

Uma vez terminado o estado de urgência em França vai ser necessário prestar muita atenção para o risco de que algumas das medidas de urgência possam tornar-se permanentes. Se não existirem novos atentados em território francês durante este período, o governo pode ser tentado a fazer valer a eficácia de algumas destas medidas, ou outras da mesma natureza, no parlamento. Os deputados não estão muitas vezes dispostos a disputar este terreno por medo de serem acusados de serem brandos em questões de segurança. Os membros do Conseil Constitutionnel raramente se têm metido no caminho. Cabe à imprensa e à sociedade civil fazerem pressão para que isso não aconteça.

[1] Bernard Manin, « The Emergency Paradigm and the New Terrorism : What if the end of terrorism was not in sight ? » in Sandrine Baume, Biancamaria Fontana, (dir.), Les usages de la se´paration des pouvoirs, Paris, Michel Houdiard, 2008, p. 136-171 ; este artigo está disponível gratuitamente.

Investigador em Ciência Política na École des Hautes Études en Sciences Sociales

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