Não queremos revoluções, muito obrigado

Como devemos interpretar os resultados das eleições na Grécia? É certamente um tema complexo. Mas devemos começar pelo princípio: o primeiro gesto oficial do novo primeiro-ministro grego foi receber o embaixador da Rússia. Pouco depois, recebeu o embaixador da China. É o suficiente — ou deveria ser o suficiente — para focar as nossas mentes.

Alguma coisa muito séria está a ter lugar na Grécia. E Portugal deve estar atento. A Grécia foi o segundo país da Terceira Vaga de democratização mundial — que Portugal inaugurou em 1974, sendo seguido pela Grécia e depois por Espanha. Em Espanha, talvez a propósito, um outro partido peculiar (a que chamam “Podemos”) aparece também em primeiro lugar nas sondagens.

Talvez seja uma coincidência. Mas pode ser que não seja: duas democracias muito recentes, precedidas por ditaduras e guerras civis, assistem à fragmentação dos partidos que viabilizaram as transições democráticas — e à emergência de partidos anti-sistema que fazem a corte a regimes anti-ocidentais.

Portugal teve a este respeito pelo menos uma vantagem importante, que na altura terá sido uma desvantagem: não tivemos uma “transição pactada”, como em Espanha, e sofremos 18 meses de PREC, que nos levou à beira de uma ditadura comunista. Foi uma vacina que convinha agora ser recordada por todos os partidos democráticos, a começar pelo Partido Socialista, que liderou a resistência às duas ditaduras: não queremos revoluções, nem de esquerda, nem de direita, muito obrigado. E sabemos muito bem a que mundo queremos pertencer: ao mundo euro-atlântico das democracias parlamentares e das economias de mercado.

Por que motivo é que os gregos terão esquecido estes princípios fundamentais? Aí, receio ter de dizer que a culpa não foi só deles — embora a escolha eleitoral tenha sido deles. Lamento ter de retomar o alerta que venho repetindo há vários anos sobre os efeitos não intencionais de um entendimento dogmático da chamada moeda única europeia, o euro. Esse entendimento dogmático empurrou as democracias da Europa do Sul para uma camisa de forças desconfortável (e um fenómeno simétrico pode vir a ocorrer no Norte).

Em poucas palavras, o euro deveria desde o início ter previsto uma cláusula de saída ordeira. A disciplina orçamental a ele — justamente — associada devia desde o início ter sido apresentada como facultativa. Os países cujos Parlamentos não quisessem seguir aquela disciplina poderiam sair do euro. Isso devia ter sido dito na Grécia e em Itália, quando governos não eleitos foram incumbidos de aplicar políticas de austeridade que foram apresentadas como inevitáveis. Eram inevitáveis, de facto, para quem quisesse ficar no euro. Mas não eram para quem pudesse querer sair. E estar fora do euro devia ter sido apresentado como perfeitamente normal — e perfeitamente compatível com estar dentro da União Europeia.

Houve razões estimáveis para isto não ter sido dito: o receio de fragmentação do euro. Mas também houve razões menos estimáveis: um entendimento dogmático e monista do projecto europeu que pretende forçar os eleitorados nacionais a “libertarem-se dos seus preconceitos” patrióticos e a aceitarem como facto consumado uma Europa supranacional.

Como argumentei no Journal of Democracy em Outubro de 2012 e em Outubro de 2014, e ainda no livro Portugal, a Europa e o Atlântico (Aletheia, 2014), toda esta discussão sobre “o correcto entendimento europeísta do papel do estado-nação” é deslocada. Não há “um correcto entendimento”: há desacordo entre os europeístas sobre o papel do estado-nação.

Em democracia, nós lidamos com o desacordo dando-lhe espaço para se exprimir e oportunidade para a concorrência entre propostas moderadas rivais. Isso mesmo devia ter sido aplicado ao super-arriscado projecto de engenharia social chamado “moeda única europeia”. (Em meu entender, o próprio nome é discutível: porquê moeda única e não apenas moeda comum, em pacífica concorrência com as moedas nacionais?).

Em vez de “trivializar” o euro e de o deixar às livres flutuações das preferências parlamentares nacionais, os arquitectos do euro preferiram elevá-lo a um nível quase constitucional. O resultado não era difícil de prever (e de temer): a gradual emergência de partidos radicais e anti-sistema que iriam explorar o vazio artificialmente criado pela quase constitucionalização do euro.

Podemos ainda travar esta radicalização desnecessária? Espero que sim. Mas o primeiro passo consiste em perceber que as origens da radicalização estiveram na redução do leque de escolhas moderadas em oferta. Ainda vamos a tempo de aumentar esse leque.

Professor universitário, IEP-UCP

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