Nada voltará a ser como dantes

O eixo franco-alemão foi sempre a pedra angular da integração europeia, por mais distintos que fossem os interesses dos dois países. Hoje, todos os sinais vão em sentido contrário.

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1. A mesma sensação de que as coisas ainda podem correr mal que a Europa viveu nos anos mais difíceis da crise do euro parece estar de regresso. Os países europeus respiraram fundo quando os juros da dívida começaram a regressar à normalidade. Mario Draghi foi decisivo para acalmar os mercados. Mas, se a realidade seguisse o guião estabelecido em Berlim, a retoma começaria agora a chegar e a compensar a duríssima dose de austeridade que os países do Sul (mais) e os do Norte (menos) levaram a cabo nos últimos três anos. Os sinais que temos hoje não apontam nesse sentido.

As economias europeias voltaram à estagnação. O risco de deflação aumentou, contrariando a ideia de que seria apenas conjuntural. O presidente do BCE voltou a prometer medidas não convencionais, incluindo a compra de activos (aproximando-se das decisões tomadas pelos outros bancos centrais no início da crise), de forma a apoiar o crescimento e o emprego. Não sem dizer que essas medidas teriam um preço: prosseguir as reformas estruturais: “O risco de fazer demasiado pouco é maior do que o risco de fazer demasiado.” O problema de Draghi é que a Alemanha não quer alinhar, como Wolfgang Schauble se encarrega de dizer todos os dias. E medidas desta natureza (ou de outra qualquer) são muito difíceis de tomar contra a vontade alemã.

E por que é que a Alemanha não quer? Porque a situação política interna está a mudar num sentido que retira à chanceler a sua margem de manobra para ir levando as coisas a bom porto. Os jornais criticam-na por não se ter oposto com a devida firmeza às escolhas de Jean-Claude Juncker para a Comissão Europeias. Mas, pior do que isso, o novo partido antieuropeu que nasceu à sua direita, depois de um bom resultado nas europeias de Maio, acaba de entrar com estrondo nos parlamentos de dois estados alemães. Obteve 12,6 por cento dos votos no Brandenburgo  e 10,6 na Turíngia. Pode dizer-se que são estados de Leste com vários problemas, mas uma sondagem nacional coloca-o como o terceiro partido da Alemanha, depois da CDU (que mantem 42 por cento), do SPD (22 por cento) e à frente dos Verdes e do Die Linke. Merkel sempre disse, honra lhe seja, que um dos seus objectivos mais importantes, na gestão da crise do euro, era impedir a criação de partidos antieuropeus à sua direita. Ora, o seu pesadelo (e o nosso) começa a concretizar-se.

2. O Telegraph citava recentemente um relatório da Standard & Poor’s no qual a agência de rating avisava que a ascensão da Alternativa para a Alemanha podia voltar a paralisar a zona euro e tornar ainda mais difíceis as medidas do BCE para animar a economia. Ora, a retoma económica é hoje o desafio maior que os europeus têm pela frente e que exigiria um espírito mais colaborante de Berlim.

O problema maior é, talvez, o que se está a passar entre Paris e Berlim. O eixo franco-alemão foi sempre a pedra angular da integração europeia, por mais distintos que fossem os interesses dos dois países. Hoje, todos os sinais vão em sentido contrário. A Alemanha já não está disposta a pagar um preço para manter essa aliança que sempre olhou como fundamental para a sua relação com a Europa. A França esta politicamente enfraquecida. Hollande jogou a sua última cartada com o segundo governo Valls, mais coeso e reformista, para salvar a sua presidência e testemunhar a Merkel o seu empenho nas mudanças, desde que ela lhe retribuísse com alguma preocupação com o crescimento. Manuel Valls foi dizer-lhe a Berlim na semana passada que a França está em condições de poupar em três anos 50 mil milhões de euros nos gastos públicos mas não 80 milhões (3 por cento do défice só em 2017). Na Assembleia Nacional francesa tinha dito que chegou a altura de Berlim “assumir também as suas responsabilidades”. “Como chefe de Governo não aceitarei nunca que me digam o que tenho de fazer pelo meu país porque, tal como os senhores, sou um patriota”, disse em Berlim perante um conjunto de empresários. A chanceler não deu mostras de compreender este apelo da França. Pelo contrário, endureceu o discurso.

Angela Merkel está legitimamente preocupada com o sucesso da Alternativa para a Alemanha. O problema é que também devia estar preocupada com o que se está a passar em França com a Frente Nacional. Ou com o referendo na Escócia. A paisagem política europeia não é animadora, quando quase todos os partidos europeus em quase todos os Estados-membros estão em forte perda, em benefícios dos extremos, porque não conseguem explicar aos seus eleitores que a sua melhor hipótese para enfrentar estes tempos de mudança e de medo ainda pode ser a União Europeia.

3. Tudo somado, a Europa volta a um clima de crise quando o mundo lhe pede para animar a sua economia, que está de novo a puxar o crescimento mundial para baixo. E, mais importante ainda, quando os desafios à sua segurança não podiam ser mais exigentes. Na Ucrânia foi possível um acordo que, pelo menos, travou o conflito e criou as bases para uma negociação. A Europa continua a mostrar que não perdeu a vontade de penalizar a Rússia enquanto a Rússia não aceitar algumas regras básicas da ordem internacional. Mas terá de fazer mais do que isso se não quiser aceitar mais um “conflito congelado” nas suas fronteiras nos termos em que Putin deseja, para continuar a desestabilizar a Ucrânia sempre que lhe der jeito. Isso implica que a Europa tenha uma estratégia de longo prazo para lidar com a Rússia, que verdadeiramente ainda não há. E exige também um forte compromisso da NATO com os países aliados que são mais vulneráveis a uma ameaça da Rússia à sua própria segurança (três F-16 portugueses integram a força da NATO que protege a fronteira dos bálticos). Até agora, a Europa assumiu o papel de garante da estabilidade ucraniana, escreve Judy Dempsey, do Carnegie Europe. Mas não se pode esquecer da Ucrânia já amanhã e precisa de recursos financeiros elevados. Dempsey duvida da sua capacidade em fazê-lo, apesar das consequências.

Do mesmo modo, a Europa tem de responder positivamente à estratégia de Obama para lidar com o Estado Islâmico. O Presidente definiu a sua nova estratégia para continuar a garantir a segurança internacional num mundo que, gostemos ou não, é cada vez mais hobbesiano: criar alianças regionais em torno de interesses comuns. Está a ser assim com os países árabes na Síria e no Iraque. Vai ter de ser assim com os aliados europeus, por maioria de razões. Depois da França, o Reino Unido, Dinamarca, Holanda e Bélgica já se juntaram aos bombardeamentos no Iraque, mesmo que com uma força relativa. A guerra contra esta nova barbárie jihadista vai levar anos e não meses. Exige visão política e vastos recursos. A Europa tem todos os motivos para a encarar a sério. Como escrevia o correspondente do Guardian em Bruxelas, há a convicção entre muitos responsáveis europeus de que, mais tarde ou mais cedo, haverá um grande atentado terrorista na Europa. O problema mais sério é o que fazer com os 3 ou 4 mil jihadistas de origem europeia que estão a combater no Estado Islâmico.

Podíamos acrescentar a tragédia que se vive no Mediterrâneo, onde morrem diariamente centenas de refugiados e imigrantes que querem chegar á Europa. A indiferença é impossível. Se alguém pensa que a Europa pode continuar a debater-se apenas sobre como acertar o défice ou fazer reformas, por mais importantes que elas sejam, ignorando uma resposta estratégica ao mundo que a desafia a partir das suas próprias fronteiras, então os europeus estão condenados a não ter grande futuro. Voltar ao passado é impossível. Mas ainda é possível encontrar em conjunto um caminho para o futuro. 

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