Nacionalismos pós-modernos

A esta nova vaga de aspirações independentistas, de que o caso escocês é exemplo, não será alheia a preponderância de uma cultura de forte índole narcísica no espaço cultural do ocidente.

Os cidadãos escoceses vão hoje escolher entre a permanência no Reino Unido ou a proclamação da independência. Contrariamente ao que se antecipava até há bem pouco tempo, o embate adivinha-se agora bastante cerrado. Sobre este assunto muito já se tem escrito e, diga-se de passagem, na maior parte dos casos com assinalável propriedade.

Há, porém, um ângulo de análise que me parece ainda insuficientemente explorado e que se me afigura conter um elevado poder explicativo. A esta nova vaga de aspirações independentistas, de que o caso escocês é exemplo, não será alheia a preponderância de uma cultura de forte índole narcísica no espaço cultural do ocidente. Por estranho que possa parecer, é possível descortinar uma ligação subterrânea entre a manifestação mais histriónica dessa cultura narcísica, que consiste na valorização obsessiva do corpo (seja no referente à sua irredutível individualidade, seja na dimensão de objecto destinado a uma grande exposição pública), e esta pulsão colectiva pela busca de uma pertença de natureza identitária. Nas últimas décadas assistimos ao triunfo simultâneo do liberalismo económico, do consumismo e do legado cultural das revoluções mentais inspiradas nos acontecimentos de Maio de 68. Observámos ainda a retracção histórica das representações doutrinárias clássicas e dos projectos colectivos animados por propósitos emancipadores. A crise das religiões, pelo menos nas suas formulações tradicionais, inscreve-se também nesta mudança de cenário.

Se é verdade que o surgimento de novas instâncias políticas de carácter supranacional concorreu decisivamente para a transformação de quimeras mais ou menos impraticáveis em apelativos projectos políticos, não é menos certo que só a eclosão de um caldo de cultura favorável a tal evolução pode justificar o grande salto ocorrido. Atentemos no presente caso escocês: a causa independentista constituiu durante muito tempo uma aspiração difusa e pouco popular, preconizada por sectores relativamente marginais face aos centros de decisão, e num curto lapso de tempo tornou-se uma ambição política amplamente partilhada ao ponto de ameaçar alcançar uma adesão eleitoral maioritária. Será de crer que as alterações institucionais verificadas no plano europeu só por si promoveram uma tão radical mutação no plano da representação dos interesses nacionais conducente à emergência deste fenómeno? Não o creio, ainda que isso não signifique uma desvalorização da importância desse tipo de contributo para o que agora está a suceder. Aliás, seria pouco avisado desatender à relevância da questão económica associada a estas modificações institucionais. Sem o alargamento do mercado resultante da integração europeia nenhum destes pretensos novos Estados teria verdadeiras condições de afirmação, ou se as tivesse seria à custa de uma drástica redução dos respectivos níveis de vida. Só que essa explicação não chega.

O que mudou radicalmente, e ajudou à reemergência destes nacionalismos latentes, foi a projecção no espaço público de uma relação narcísica com a realidade. Desse modo, a questão identitária, agora aplicada no plano colectivo e reconstituída a partir de heranças, aspirações e tradições, surge como uma espécie de prolongamento do próprio corpo individualizado e singular. Não estamos sequer perante uma recuperação dos modelos organicistas mais clássicos; estamos diante de uma nova forma de projecção da máxima subjectividade nos mecanismos de integração colectiva. Curiosamente não é pela pura recuperação do conceito tradicional de povo, no sentido da palavra germânica "volk", que estes neonacionalismos se conseguem impor. Nessa perspectiva bem poderiam ser designados como nacionalismos pós-modernos. No caso escocês acontece até que um dos elementos de diferenciação específica remete para uma base ideológica e eleitoral - contrariamente ao resto do Reino Unido, naquela região não se quer pôr em causa o Estado-Providência. Levado ao limite, este facto poderia conduzir a uma interpretação biologizante das preferências políticas, coisa que manifestamente não faz parte do nacionalismo escocês.

Esta perspectiva analítica poderá ajudar-nos a compreender melhor o que se está a passar em várias regiões europeias. Não estaremos apenas diante de reivindicações egoístas, como alguns sugerem, nem tão pouco perante o relançamento de antigas aspirações reprimidas. Estamos perante um fenómeno novo e, por isso, mesmo com um potencial de afirmação enorme. Basta vermos o que se passou há dias em Barcelona para constatarmos a densidade energética destas novas pulsões nacionalistas. 

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