Na Dinamarca, os jihadistas retornados encontram uma mão amiga

No país, nem um único combatente regressado foi preso. A palavra de ordem é integrar, integrar, integrar. E dialogar com a comunidade muçulmana, incluindo a mais radicalizada.

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O líder da mesquita, Oussama El-Saadi Jan Grarup/The Washington Post
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A cidade acredita no diálogo e na reintegração dos retornados Jan Grarup/The Washington Post

A correria matinal das compras foi interrompida pela chegada de Talha, um homem esguio de 21 anos vestido com um camuflado do deserto e com uma longa barba. Ele passeou-se pelo centro comercial local, marchando como um soldado, tal como tinha aprendido nos campos de batalha da Síria. Filas de jovens muçulmanos saudaram-no como se fosse um rei acabado de regressar da guerra.

As-salamu alaykum.

Wa alaikum assalaam.

Noutros países, Talha – um entre as centenas de jovens jihadistas do Ocidente que lutaram na Síria e no Iraque – podia ter sido impedido de reentrar no seu país ou enfiado na prisão. Mas na Dinamarca, um país que produziu mais jihadistas estrangeiros per capita do que qualquer outro, a cidade portuária de Aarhus está a apostar numa nova abordagem, estendendo-lhes um tapete de boas-vindas.

Nem um único combatente regressado foi preso. Em vez disso, tendo como base a convicção de que a discriminação em casa é um acto tão criminoso como o recrutamento pelo Estado Islâmico, os responsáveis locais estão a fornecer aconselhamento psicológico ao mesmo tempo que ajudam os retornados a encontrar empregos ou vagas em escolas e universidades.

Algumas opiniões mais progressistas dizem que Aarhus devia tornar-se um modelo para outras comunidades nos Estados Unidos e na Europa que estão a tentar lidar com a questão do que fazer quando uma geração de jihadistas volta a casa.

Para o bem e para o mal, a resposta desta cidade deixou tipos como Talha a passearem-se livremente pela rua. Filho de imigrantes muçulmanos moderados do Médio Oriente, o jovem radicalizou-se e lutou com uma brigada islamista na Síria durante nove meses para depois regressar em Outubro. De novo em solo dinamarquês, ainda sonha um dia vir a viver num califado no Médio Oriente. Rejeita as decapitações dos reféns estrangeiros levadas a cabo pelo Estado Islâmico, mas defende as execuções sumárias de soldados sírios e iraquianos.

“Eu sei o que algumas pessoas pensam. Elas têm medo de nós, dos que estão a regressar”, diz Talha, um nome que adoptou para proteger a sua identidade porque nunca contou ao seu pai que foi lutar para a Síria. “Vejam, nós não somos mesmo perigosos.”

No entanto, os críticos consideram a abordagem branda desta cidade precisamente isso – perigosa. E o esforço que aqui está a ser feito rapidamente se transformou num peão num debate bem mais alargado que alastra na Europa sobre o islão e a natureza do extremismo. Cada vez mais vozes se levantam para exigir novas leis que permitam acusar os jihadistas retornados de traição, mas também clamam por medidas para travar a imigração de países muçulmanos e para proibir tradições islâmicas, como a circuncisão religiosa.

Num país que tem bem presente na memória a violenta reacção do mundo muçulmano depois de um jornal dinamarquês ter publicado cartoons do profeta Maomé em 2006, muitos querem que a cidade de Aarhus reprima – em vez de fazer a corte – os extremistas.

“Eles estão a ser demasiado brandos e não estão a ser capazes de ver o problema”, disse Marie Krarup, uma influente deputada do Partido Popular dinamarquês, a terceira força política do país. “O problema é o islão. O islão em si é radical. Não é possível integrar um número muito grande de muçulmanos num país cristão.”

Aarhus está a tratar os combatentes religiosos regressados mais como jovens rebeldes do que como suspeitos de terrorismo, porque essa era a característica inicial da maioria deles.

A maioria eram jovens como Talha, com idades entre os 16 e os 28 anos, incluindo vários ex-criminosos e membros de gangs que recentemente tinham encontrado aquilo a que chamam “o verdadeiro islão”. Cresceram em famílias muçulmanas moderadas e, com alguma frequência, eram filhos de pais separados. E quase todos viviam no chamado ghetto de Gellerupparken.

Um aglomerado densamente povoado de blocos de habitação social, Gellerupparken é onde vivem as famílias de imigrantes que chegaram nas vagas de migrações muçulmanas iniciadas nos anos 1960. O desemprego – especialmente junto dos jovens – é bem mais alto do que a média na cidade. A certa altura, a criminalidade era tanta que até as ambulâncias tinham que ser escoltadas pela polícia. Gellerupparken tornou-se no terreno fértil para jovens revoltados em risco de se tornarem militantes islamistas.

É com o objectivo de mudar este estado de coisas que a cidade lançou um plano de renovação em larga escala de Gellerupparken. Melhores casas podem melhorar as condições de vida no bairro e atrair mais dinamarqueses, contribuindo para uma maior integração. Novos canais de transportes públicos e estradas irão aproximar mais o bairro do resto da cidade.

“São jovens que se viraram para a religião numa altura muito difícil das suas vidas, e agora lidam com dilemas existenciais sobre ir ou não lutar por aquilo em que acreditam”, explicou o presidente da câmara de Aarhus, Jacob Bundsgaard. “Não podemos aprovar legislação que muda a maneira como pensamos e sentimos. Aquilo que podemos fazer é mostrar-lhes que estamos a ser sinceros sobre a integração, sobre o diálogo.”

“Não me sinto estranho por estar de volta”, disse Talha, enquanto passa por um stand de venda de sumos biológicos no centro comercial. Quatro raparigas dinamarquesas olham para ele cautelosamente. É bem conhecido aqui, uma figura heróica entre os jovens muçulmanos, muitos dos quais sabem que combateu na Síria e cumprimentam-no com a mão no coração e um aceno de cabeça respeitoso. “Aqui é a minha casa.”

Talha nasceu na Dinamarca, no seio de uma família que veio de um país que faz fronteira com a Síria. Para manter a sua privacidade, declinou dizer qual. A ânsia de partir para lutar, disse, foi crescendo em lume brando. Durante meses, viu vídeos no YouTube de civis mortos pelo Governo de Presidente sírio, Bashar al-Assad. “Não podia continuar sentado no conforto da Dinamarca enquanto milhares e milhares dos meus irmãos estavam a morrer”, explicou. Começou a discutir os seus sentimentos com outros amigos religiosos, e num par de meses foi desenhado um plano.

No dia em que partiu para a Síria, em Outubro de 2012, disse aos seus pais divorciados que ele e um amigo iam para a Turquia de férias. Em vez disso, o primo do seu amigo tinha organizado a sua passagem para a Síria. Trabalhou num campo de refugiados durante algumas semanas, antes de se juntar a um batalhão independente associado ao Ahrar al-Sham, um grupo com alegadas ligações à Al-Qaeda. Durante os meses em que manobrou artilharia pesada perto de Aleppo, o seu grupo também mantinha relações harmoniosas com o Estado Islâmico.

“Não podem acreditar em tudo o que ouvem sobre o Estado Islâmico”, disse Talha. “Tem coisas más, mas também tem coisas boas.”

Voltou à Dinamarca em 2013 para passar uns meses, e contou à sua mãe – mas não ao pai – o que tinha estado a fazer na Síria. Desde o seu despertar religioso que Talha convenceu a mãe a usar um lenço na cabeça e ela própria se tornou mais religiosa. Mas “ela chorou quando lhe disse onde tinha estado”, contou o jovem jihadista. Quando uns meses depois regressou à Síria, a mãe não o tentou convencer a não ir.

Em Outubro do ano passado, Talha regressou à Dinarmarca quando se agravaram os combates entre grupos rivais de jihadistas na Síria. Desde então, teve uma reunião com um responsável da polícia que o interrogou sobre os seus planos e intenções. No âmbito do programa de Aarhus, foi-lhe oferecido – e ele aceitou – um subsídio para assistir às aulas de matemática que precisa para entrar numa escola de engenharia. No entanto, como o aconselhamento é voluntário, optou por assistir às sessões de terapia que diz não precisar. Diz que não quer que nada de mal aconteça à Dinamarca, mas critica aquilo que descreve como um sentimento anti-islâmico crescente nos media e no Governo nacional.

“Não vejo como isso possa ajudar”, disse.

As autoridades dinamarquesas afirmam que a vasta maioria dos cerca de 30 residentes de Aarhus que foram para a Síria estavam ligados de alguma forma a um dos centros religiosos mais controversos da Europa – a mesquita de Grimhojvej. Começou a frequentar aquele local há quatro anos, dois antes de partir para a Síria. Encontrou a mesquita através de um amigo de infância que o ajudou a deixar para trás aquilo que ele descreve como um mundo de vícios seculares. Festas com adolescentes dinamarqueses. Álcool. Raparigas. “Esse é o meu passado, não o meu presente.”

Mas quer deixar bem clara uma coisa. Ele, tal como a liderança da Grimhojvej, nega que tenha sido a mesquita a recrutá-lo e a outros combatentes.

“Eles são homens bons”, disse, com um sorriso.

Outros discordam.

A mesquita abriu em 2008 e, nos últimos anos, absorveu a congregação de uma outra mesquita próxima que fechou e onde vários homens tinham sido detidos por acusações ligadas ao terrorismo. Um dos actuais imãs está a ser investigado na Alemanha por incitar ao ódio durante uma visita a Berlim em Julho. Entre 2008 e 2013, outro imã — Abdessamad Fateh, um imigrante marroquino de 46 anos, também conhecido por Abu Hamza — pregou na mesquita de Grimhojvej. Depois de passar cinco meses na Síria, está de regresso a Aarhus. Segundo responsáveis de serviços secretos árabes, Fateh recrutou ocidentais, incluindo um jovem dinamarquês convertido ao islão, para lutarem na Síria e no Iraque. Este mês, os Estados Unidos colocaram Fateh na lista de suspeitos terroristas com possíveis ligações à Al-Qaeda.

No interior de uma antiga fábrica de gelo que é agora a mesquita de Grimhojvej, o seu presidente, Oussama el-Saadi, rejeitou as alegações. Se eles são culpados de alguma coisa em Grimhojvej é de simplesmente serem crentes devotos. “Temos o direito à nossa fé”, disse.

No entanto, em Janeiro, responsáveis municipais de Aarhus fizeram um ultimato à mesquita. Ou se abria a um novo diálogo com a comunidade ou enfrentava a condenação pública e, provavelmente, uma crescente pressão legal.

A mesquita escolheu cooperar.

Desde Janeiro, a polícia e responsáveis municipais envolveram-se numa série de sessões inéditas realizadas pela mesquita. Na presença dos líderes religiosos, responsáveis policiais e municipais encontraram-se com combatentes retornados como Talha para avaliarem os seus níveis de risco. Também se encontraram com membros do grupo de jovens da mesquita para que estes dissuadissem outros jovens muçulmanos de viajar para o Médio Oriente. Em reuniões mensais, responsáveis municipais, polícias e líderes religiosos debatem agora a ideologia religiosa, a lei dinamarquesa e a liberdade de expressão.

A mesquita ainda apoia abertamente um califado no Médio Oriente, recusa-se a rejeitar claramente o Estado Islâmico e avisa que a recente decisão da Dinamarca de se juntar à coligação liderada pelos EUA nos ataques aéreos contra aquele grupo jihadista só vai contribuir para o aumento do terrorismo doméstico.

No entanto, é inegável que a mesquita de Grimhojvej atenuou a sua posição pública em relação ao jihadismo, rejeitando, por exemplo, as decapitações de reféns estrangeiros pelo Estado Islâmico. Saadi nega as acusações de que a mesquita se transformou num centro de recrutamento de militantes, afirmando que não encoraja nem deixa de encorajar aqueles que querem ir lutar. Mas agora, a sua linha oficial – pelo menos em público – é que os jovens muçulmanos de Aarhus devem ficar em casa.

Responsáveis da polícia dizem que as estatísticas mostram que esta nova abordagem está a resultar.

“Em 2013, tivemos 30 jovens que foram para a Síria”, disse Jorgen Ilum, comissário da polícia de Aarhus. “Este ano, que seja do meu conhecimento, só tivemos um. Acredito que a principal razão é o nosso contacto e diálogo com a comunidade muçulmana”.

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