Na China, com o turismo também se faz política

Os chineses tornaram-se na população que mais viaja (e gasta) para o estrangeiro. Pequim conseguiu tornar os seus milhões de turistas num recurso diplomático.

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Grupo de turistas chineses em Taiwan Sam Yeh / AFP

Esta não é a típica viagem de cruzeiro como as que enchem as cidades portuárias do Mediterrâneo a cada Verão. A caminho do destino, os passageiros vêem espectáculos de dança ao vivo, assistem a um documentário e ao chegar ao destino participam numa cerimónia de hastear da bandeira. Não é o programa mais excitante para ocupar umas férias, mas estes também não são os típicos turistas. Antes de embarcarem, todos eles tiveram de ser sujeitos a um teste sobre as suas visões políticas.

Estamos na China, ou melhor, nos territórios do Mar do Sul que Pequim reivindica e que têm estado no centro de algumas das mais importantes disputas territoriais da actualidade. Desde 2012 que companhias de cruzeiros chinesas organizam viagens a algumas das minúsculas ilhas nesta região. O turismo é cada vez mais encarado pela liderança chinesa como uma forma de exercer o seu poder no exterior — a começar logo na sua vizinhança.

A viagem sai Sanya, um porto no sul da província de Hainan, e dura cerca de 13 horas, durante as quais 200 turistas — que pagaram entre 2980 e 19.800 yuan (400 e 2659 euros), de acordo com o South China Morning Post — podem usufruir das comodidades normais nos barcos deste género. A bordo há um ginásio, espectáculos de dança, karaoke e projecções de filmes. Um dos mais populares é um documentário produzido pela televisão estatal sobre um confronto nos anos 1970 entre embarcações chinesas e uma frota de guerra do Vietname do Sul que se preparava para “tomar” as ilhas Paracel (Xisha, para a China).

Nas ilhas, as actividades turísticas incluem um juramento de bandeira, mas também um almoço no único restaurante de marisco do arquipélago. O SCMP calcula que mais de cem mil turistas chineses tenham visitado esta região nos últimos anos. O Governo chinês pretende desenvolver estas ilhas, muitas delas de construção artificial sobre recifes, de forma a poder afirmar a sua soberania. A promoção do turismo é apenas um dos métodos utilizados; as ilhas maiores têm algumas infraestruturas para poderem ter habitantes a tempo inteiro, que recebem um subsídio do Estado; outras têm sido usadas para albergar instalações militares e os pescadores chineses têm recebido incentivos para pescarem nas águas internacionais.

Política de Estado

A China abriu-se ao turismo no início dos anos 1990 e, desde então, as férias dos seus habitantes têm assumido um significado político que é alheio à generalidade. No caso das viagens às ilhas Paracel, os turistas são em geral chineses com um grande sentimento patriótico que não se importam de ver documentários militares ou de assistir ao hastear da bandeira. Mas mesmo as viagens mais comuns são encaradas em Pequim como um potencial recurso diplomático.

Até aos anos 1990, para saírem do país, os chineses tinham de ter uma autorização do Governo e justificar a razão da viagem — normalmente a título profissional ou diplomático. Com a melhoria das condições de vida da generalidade da população, a procura de lazer no exterior cresceu e o Governo decidiu abrir a possibilidade de os seus cidadãos poderem visitar outros países de forma mais livre, embora com algumas limitações.

Foi criado o Estatuto de Destino Aprovado (EDA), que é atribuído a um país depois de ser estabelecido um acordo entre a agência estatal de turismo e o Governo em questão, que tem de assegurar que a organização das visitas é realizada por agências chinesas certificadas. Actualmente há 146 países que gozam deste estatuto, incluindo todos os membros da União Europeia. “Apenas agências de viagens certificadas com o EDA têm permissão para promover e organizar grupos de turistas, incluindo os pedidos de vistos e o pagamento em moeda estrangeira a vendedores estrangeiros”, explica o blogue China Contact.

Estar de fora desta lista tem um impacto enorme para o sector turístico. O banco HSBC estima, por exemplo, que em 2024 haja 242 milhões de turistas chineses no estrangeiro — o equivalente ao número de turistas que no ano passado visitaram as 20 cidades mais populares do mundo. Em 2013, um em cada dez turistas no mundo era chinês e foram eles que mais gastaram (115 milhões de euros). Portugal, por exemplo, recebeu no ano passado a visita de 150 mil chineses e recentemente foram abertos seis novos centros emissores de vistos no país. As autoridades chinesas calculam que, nos próximos cinco anos, 150 milhões de turistas chineses deverão visitar os países que integram a chamada "Rota da Seda" — uma série de empreendimentos industriais e de transportes que pretende ligar a China à Europa através da Ásia Central.

Através do EDA, Pequim tem o poder de ajustar os fluxos de turistas chineses, consoante os seus imperativos. Foi a essa conclusão que chegou o professor da Escola de Hotelaria da Universidade Politécnica de Hong Kong, Tony Tse, num estudo publicado em 2014. O turismo para o exterior é, sob este ponto de vista, uma forma de “soft power” exercido pelo regime chinês para obter ganhos diplomáticos.

O especialista dá o exemplo do adiamento da concessão do EDA ao Canadá até que o Governo canadiano aceitasse extraditar Lai Chanxing, um empresário acusado por Pequim de corrupção e que acabou por ser condenado a prisão perpétua em 2012. Mas mesmo quando o acordo está garantido, há formas de usar o turismo como forma de pressão. Tse lembra o conflito diplomático com o Japão em torno das ilhas Diaoyu (Senkaku em japonês), reivindicadas pela China. “Muitos dos principais operadores turísticos da China deixaram de promover o Japão. Outros cancelaram viagens e reembolsaram os clientes”, nota o professor, que refere uma queda de 70% das receitas provenientes do turismo chinês para o Japão, em 2012.

O exemplo mais recente envolve um dos destinos mais populares para os chineses: Taiwan. A proximidade explica em grande parte a preferência pela ilha no Oceano Índico que só no ano passado recebeu 4,2 milhões de turistas continentais — um número que suporta a posição de Taiwan como o 15.º destino mais procurado em todo o mundo. Desde 2008 que os governos dos dois lados do estreito têm procurado promover um “desenvolvimento pacífico” de relações entre os dois Estados — formalmente cada Governo diz que os dois são o mesmo país, embora com significados diversos — e o turismo é uma das áreas onde os progressos foram mais visíveis.

Porém, a tendência tem sido revertida desde o início do ano. O Governo da ilha disse que, desde o início do ano, houve uma queda de 22% de turistas do continente. Os operadores das viagens de autocarros revelaram em Maio que a média de clientes foi de 2800 por mês, uma forte queda em relação aos quatro mil no ano passado. A descida coincidiu com a tomada de posse da nova Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, que tem uma agenda mais distante da China continental em comparação com o seu antecessor. O director da associação nacional de motoristas de autocarros, Lu Shiao-ya, falava em interferência política. “A China está a usar os seus turistas como moeda de troca contra o novo Governo de Taiwan”, afirmou, citado pelo jornal Strait Times.

O Governo taiwanês está em alerta e estabeleceu uma task-force com o objectivo concreto de atrair turistas da China continental. O chefe da comissão, Chang Ching-sen, já dirigiu os primeiros conselhos aos seus concidadãos: parem de dizer mal dos chineses nas redes sociais.

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