Morreu a "Pantera Negra" da Pérsia. Acabou uma era

Era irmã gémea do último rei da Pérsia e, diz-se, a voz que o guiava na política. Quando o Xá foi derrubado pela revolução islâmica, ela foi derrubada com ele. Mas não tombou. A vida de Ashraf Pahlavi dava uma tragédia shakespeariana. “A sua morte marca o fim de uma era.”

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Chamavam-lhe "Pantera Negra", e Ashraf Pahlavi até gostava da alcunha, achava que lhe assentava bem: “Como a pantera, a minha natureza é turbulenta, rebelde, confiante.”

A irmã gémea do último Xá do Irão – e muitas vezes a sombra por trás do monarca, dizia-se – morreu na semana passada aos 96 anos, depois de várias décadas passadas no exílio. Tinha uma personalidade caleidoscópica: dedicou-se à defesa dos direitos das mulheres e à luta contra o analfabetismo, mas não viu, ou não quis ver, os abusos cometidos pelo reinado do seu irmão.

“Não me importo de morrer. Quando morremos, morremos. O que eu não quero é morrer na minha cama. Preferia morrer num acidente ou ser baleada.” Passaram 36 anos desde que Ashraf Pahlavi disse estas palavras ao jornalista da revista People que a foi entrevistar. Tinha acabado de lançar o seu livro Faces in a Mirror: Memoirs from Exile, onde apresentava a sua versão (dourada) do papel da monarquia na modernização do Irão e tentava limpar o nome da família, acusada de corrupção e abuso de poder. A Revolução Islâmica depusera há menos de um ano a dinastia, e os Pahlavi tinham sido obrigados a abandonar o país.

Nessa Primavera de 1980, Ashraf Pahlavi recebeu a imprensa no seu triplex em Nova Iorque, com guardas e um pastor alemão à porta, e criados fardados de branco a servir copos de chá. O repórter do New York Times referia o anel de esmeralda que tinha no dedo e o diamante em forma de coração pendurado ao pescoço, no qual ia mexendo ao longo da conversa, para passar a imagem de que se estava perante uma verdadeira princesa no exílio.

A vontade expressa na altura, e que revelava como a tragédia fazia parte da sua vida, não se cumpriu. A princesa morreu durante o sono, na Europa, de acordo com um assessor – em Monte Carlo, especificou a televisão iraniana. E “com a esperança no seu coração de ver a liberdade chegar ao Irão”, escreveu aquele que seria o príncipe herdeiro do Trono do Pavão, Reza Pahlavi, quando anunciou a morte da tia a 7 de Janeiro.

O legado que deixa no seu país é pouco claro. “A morte da princesa Ashraf Pahlavi marca o fim de uma era em mais do que um sentido”, escreveu Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos da Columbia University, no site da Al-Jazira.

Dabashi adianta que os relatos sobre a dinastia Pahlavi têm doses maiores de ficção do que de realidade. “Ela foi e morreu como um fenómeno que impede qualquer pessoa de chegar a um consenso sobre a sua personalidade.” Sendo assim, “os seus apoiantes irão celebrá-la como uma defensora dos direitos das mulheres, patrona das artes e um farol de modernidade social, enquanto os seus detractores a acusarão de ser uma estratega monstruosa que foi fundamental para reinstalar o reinado ditatorial do irmão e uma beneficiária da sua governação tirânica”.

Sem véu

Ashraf Pahlavi era ainda adolescente quando, juntamente com a mãe e a irmã, apareceu em público sem véu na cabeça, uma estreia no país. O gesto foi ousado e altamente simbólico: nessa altura, as mulheres iranianas não saíam à rua sem o chador, uma túnica que as cobre da cabeça aos pés. No site oficial da princesa, há um capítulo dedicado a esse momento, documentado com uma foto: a rainha à frente, descendo umas escadas, com as duas filhas atrás – em vez do lenço, um chapéu.

Estávamos em 1934 e o pai da jovem Ashraf estava empenhado em “ocidentalizar” a Pérsia, trazê-la para o século XX, escreve a princesa. “Para fazer isso, para nos tornar prósperos e poderosos, não poderia deixar as mulheres, metade da pequena população iraniana, inactivas ou cobertas.” O chador acabaria mesmo por ser abolido, para choque da população mais conservadora.

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O Xá com os filhos em 1928: Mohammad Reza,a princesa Schams, ao centro, e Ashraf, à direita AFP

Em casa, o Xá era diferente: uma vez ordenou-lhe que mudasse imediatamente de roupa, porque estava com um vestido sem mangas. E aos 18 anos obrigou-a a abandonar o sonho de estudar numa universidade na Europa para se casar com um membro de uma família importante do país. Foi o primeiro de três casamentos mal sucedidos.

Ashraf deixou a imagem de uma mulher emancipada, ocidentalizada, fluente em francês e inglês. Ainda antes do exílio, a sua vida dividia-se entre o luxuoso apartamento de Park Avenue, uma mansão em Paris e uma villa em Juan-les-Pins, na Riviera francesa. Era uma mulher que gostava de jóias e roupas caras e de desafiar a sorte ao jogo; que foi pintada por Andy Warhol, que lhe realçou os cabelos pretos e os lábios com bâton vermelho. Mas que ao mesmo tempo, vestida com os seus fatos Dior, passou vários anos a defender publicamente os direitos das mulheres. Em 1967 foi a delegada do Irão na ONU, incluindo na Comissão dos Direitos Humanos – não sem polémica, porque muitos a acusavam de nunca ter feito activismo directo e lembravam como 4000 dissidentes iranianas eram tratadas e perseguidas pela monarquia.

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O momento da saída sem o véu, em 1934 DR

Na entrevista de 1980 ao New York Times, referiu como ficara “de coração partido” com o regresso do véu no seu país. “Lembro-me de quão fantásticas as nossas mulheres eram, exactamente como as europeias, tão bem formadas, e agora estão a ficar tão retrógradas outra vez. A mulher iraniana voltou para casa, e isso deixa-me realmente infeliz.”

Reconheceu que nunca foi uma boa mãe. “Por causa do meu estilo de vida, nunca parava muito em casa. Mas sou uma boa mãe no sentido de ter sempre insistido que recebessem uma boa educação, o que eu não tive por ter nascido rapariga.”

Filha de Reza Xá Pahlavi, comandante militar, e da segunda das suas quatro mulheres, Tadj ol-Molouk, a princesa Ashfar Pahlavi era uma entre dez irmãos. Mas foi com o irmão gémeo que estabeleceu uma relação mais próxima – até à morte de Mohammad Reza Pahlavi telefonavam-se todos os dias, contou uma vez. Nasceu a 26 de Outubro de 1919, cinco horas depois dele.

No seu livro Faces in a Mirror, descreve-se como uma pessoa rebelde que sempre se sentiu sozinha. As atenções dos pais concentravam-se sobretudo no seu irmão gémeo, a quem estava destinado o trono. “Percebi muito cedo que tinha de criar um lugar para mim”, lê-se. “Nos últimos anos, os meus críticos diziam que eu tinha ultrapassado isso, que a minha presença estava em todo o lado. Mas quando era criança ninguém reparava em mim.”

O pai chegou ao poder depois do golpe de 1921 arquitectado pelo Reino Unido para derrubar a dinastia Qajar (que governava a Pérsia desde finais do século XVIII) e com ela a influência da Rússia no território. Tornou-se Xá em 1925. Foi também por decisão estrangeira que, em 1941, Reza Xá Pahlavi foi obrigado a abdicar. Face a suspeitas de simpatias germânicas do Xá, as tropas britânicas e soviéticas invadiram o Irão (país formalmente neutral na II Guerra Mundial), garantindo assim as suas linhas de abastecimento de petróleo. E substituíram o monarca pelo seu próprio filho, o jovem Mohammad Reza Pahlavi.

A princesa não ficou reclusa. Tornou-se uma das principais conselheiras do novo monarca.

“Eram já míticos os sermões que Ashraf dava ao irmão, incluindo um na presença de diplomatas estrangeiros em que ela exigia que ele provasse que era homem ou se revelasse um rato perante todos”, escreveu Stephen Kinzer em Os Homens do Xá – O Golpe no Irão e as Origens do Terrorismo no Médio Oriente (Ed. Tinta da China), sobre o golpe arquitectado pela CIA contra o primeiro-ministro nacionalista Mohammad Mossadegh.

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A princesa terá convencido o irmão a alinhar com a CIA DR

A marca da influência de Ashraf foi visível, segundo vários historiadores, precisamente quando Washington e Londres quiseram depor Mossaddegh (eleito em 1951 por voto popular), depois de este ter avançado para a nacionalização da indústria petrolífera, controlada pela Anglo-Persian Oil Company, e de se suspeitar de uma aproximação à URSS. Em 1953, a CIA e o SIS (os britânicos Secret Intelligence Service) traçaram um plano secreto que contava com o apoio das forças militares iranianas descontentes com o Governo – a Operação Ajax.

Face à relutância do irmão em alinhar com o plano, o agente da CIA encarregado da operação, Kermit Roosevelt, decidiu virar-se para a princesa na esperança de que esta exercesse pressão. Entregou-lhe um casaco de vison e uma quantia considerável de dinheiro. O plano avançou. Depois de uma falha inicial, que obrigou o Xá a exilar-se temporariamente em Bagdad e Roma, à segunda foi de vez, e Mohammad Reza Pahlavi voltou para ocupar novamente o Trono do Pavão. A própria CIA reconheceria mais tarde que a queda de Mossaddegh abriu caminho à Revolução Islâmica do ayatollah Khomeini.

Souvenirs de Estaline

A influência de Ashraf tornara-se evidente quando em 1946 foi a Moscovo encontrar-se com Estaline para discutir o controlo soviético do Azerbaijão – a República Popular do Azerbaijão tinha sido proclamada no início desse ano por iranianos pró-URSS, num território que fazia parte do Norte do Irão.

O relato desse encontro é feito em Faces in a Mirror e transcrito no seu site. “O Xá dizia-me muitas vezes que perder o Azerbaijão é como perder um braço, e que faria tudo ao seu alcance para reconquistar a província”, escreve. “Sempre me vi como uma pessoa forte, capaz de manter uma calma pelo menos aparente e com ar seguro quando tinha de enfrentar situações difíceis. Mas agora que estava a caminho de me encontrar com o homem mais poderoso do Leste, um homem com fama de ser espectacular e assustador ao mesmo tempo, os meus nervos não estavam tão controlados como eu gostaria.” E continua mais à frente: “Tendo em conta o estado das relações entre os nossos dois países, tive dificuldade em afastar a fantasia de que acabaria por ser presa e enviada para a famosa prisão de Lubyanka, e nunca mais se ouviria falar de mim.”

Pelo contrário, Estaline aparentemente encantou-se com a princesa. Depois de atravessar vários corredores, subir vários lances de escadas, esperar em várias salas, Ashraf Pahlavi entrou num salão escuro e reparou que, lá ao fundo, estava alguém. Era um homem baixo, de ombros largos e bigode farfalhudo. Com um olhar incisivo, e, sim, assustador também. Estendeu-lhe a mão com firmeza. “Estaline ouvia-me, sem interromper.” Nessa altura, “ele já tinha chegado à conclusão que uma revolução comunista no Irão não era um caminho viável. E por isso tentou, em vez disso, obter alguns ganhos realistas, especificamente pela criação de uma parceria soviético-iraniana para a exploração do petróleo no Azerbaijão”.

A conversa estava inicialmente limitada a dez minutos. Durou duas horas e meia. “Quando terminámos, estendeu-me a mão e acompanhou-me à porta. Antes de eu sair, pôs a mão no meu ombro, olhou-me nos olhos, e disse: ‘Dê os meus melhores cumprimentos ao seu irmão, e diga-lhe que se ele tivesse dez como você nunca teria problemas.” No dia seguinte, chegou-lhe um convite para acompanhar Estaline a um evento desportivo no maior estádio de Moscovo. O generalíssimo sentou-a ao seu lado. Ofereceu-lhe chá e bolinhos. E mais ainda: “Antes de eu deixar a Rússia, Estaline enviou-me um magnífico casaco de marta. Este presente originou algumas manchetes espalhafatosas na imprensa, mas ainda guardo com estima esta lembrança da minha primeira missão diplomática ao estrangeiro.”

A entrada dos mullahs, a saída dos Pahlavi

Numa entrevista que deu por email à revista Pública, a última imperatriz da Pérsia, Farah Diba Pahlavi, justificava assim a revolta dos iranianos contra o Xá, seu marido: “No Irão, depois de 1973, o aumento dos preços do petróleo não agradou a interesses estrangeiros. Havia um boom de desenvolvimento e o Governo não conseguia corresponder às expectativas populares. Isto criou insatisfação e terreno fértil para a oposição, que estava muito bem organizada, ao contrário de nós. O ayatollah Khomeini e os seus discípulos prometeram paraíso, transportes, combustíveis e outros bens gratuitos. Muitos acreditaram, mas abriram as portas do inferno. Hoje, muitos lamentam ter participado nas manifestações. Os mais jovens culpam os pais pela actual situação no Irão.”

Ainda no seu site, Ashraf Pahlavi adianta que, “já em 1977, notava alguns sinais inquietantes, e tinha a premonição que lá no fundo alguns acontecimentos perturbadores estavam a desencadear-se”. Falava numa campanha dos media contra o irmão, dentro e fora do Irão. “Em 1978, quando os líderes religiosos organizaram os primeiros motins nas ruas de Qom e Tabriz, encontrei-me com o meu irmão no palácio Niavaran… ‘Este é o preço que temos de pagar pela democracia’, disse-me. ‘Não tenho o direito de autorizar medidas duras que resultariam em centenas de vítimas.' Fez um momento de silêncio e acrescentou. ‘Sou um rei, não um déspota.’”

A quem acusava a família de enriquecimento à custa das riquezas do país, Ashraf Pahlavi argumentava que a fortuna foi legitimamente herdada, através de propriedades e negócios, ignorando as queixas de que as propriedades foram expropriadas e que as principais empresas eram todas controladas pelo Xá e a sua corte, referia o Washington Post no seu obituário. E adiantava: “Ela era uma importante defensora da famosa polícia secreta do Xá, conhecida como Savak, responsável por perseguições implacáveis a dissidentes e acusada de abusos generalizados.”

Alguns analistas dizem que uma parte considerável da fortuna vinha de uma taxa de 10% que a família real impunha a todas as exportações, importações e contratos com o Governo. Ela garantia que não houve pilhagens aos cofres. “O rei estava acima de todas essas coisas”, disse à People. Nem tão-pouco era cúmplice dos abusos de que eram acusados: “Mesmo que houvesse tortura, nós não sabíamos.”

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Janeiro de 1979: o Xá é obrigado a deixar Teerão e a partir para o exílio. Morrerá de cancro no ano seguinte Sygma/Corbis

Em 1983 afirmou: “Se tivesse realmente os 65 mil milhões de dólares que algumas pessoas diziam que tínhamos, tínhamos reconquistado o Irão num piscar de olhos”, citava a Associated Press.

O exílio que se seguiu à revolução não foi pacífico. Nesse mesmo ano, Shahriar Shafiq, filho do seu segundo casamento, era assassinado à frente de casa da mãe, em Paris, por enviados do novo regime em Teerão, que suspeitava que ele estivesse a planear um golpe para repor a monarquia, segundo a versão da princesa. Mandou embalsamar o seu corpo para um dia o poder enterrar no Irão.

No ano seguinte, disse ao New York Times: “Já não tenho prazer na vida com tudo o que me aconteceu a mim e ao meu irmão." Poucos meses depois, o Xá não resistiria a um cancro; teve um funeral de Estado no Cairo, onde estava exilado.

Os episódios sombrios já tinham sido uma realidade antes e continuariam depois. Em 1977, dois homens armados dispararam contra o seu Rolls-Royce quando regressava de uma noite no casino, em Cannes – era bastante dada ao jogo. Mataram a sua assistente e feriram o motorista. Ashraf Pahlavi saiu ilesa. A sobrinha, Leila, morreu em 2001. A filha do Xá, que chegou a ser modelo de Valentino, sofria de depressão, e, aos 31 anos, foi encontrada sem vida no seu apartamento em Londres. A autópsia revelou uma dose fatal de “barbitúricos e cocaína”. Dez anos depois, seria o filho mais novo de Mohammad Reza Pahlavi, Ali, a suicidar-se, com uma bala na cabeça. “A vida da princesa Ashraf assemelhou-se a uma tragédia shakespeariana”, escreveu o Guardian.

A princesa deixa um filho, Shahram Pahlavi, do primeiro casamento, cinco netos e vários bisnetos. Viveu os últimos anos em Paris, a jogar bridge com as amigas e a ver imagens de um Irão pré-revolução. Nunca chegou a divorciar-se do seu terceiro marido, Mehdi Bushehri, um empresário que acabou por se estabelecer em Paris depois da revolução, mas viviam vidas separadas, por vezes em continentes diferentes.

Ashraf Pahlavi adiantou na sua entrevista à AP: “À noite, quando vou para o meu quarto, é quando os pensamentos aparecem em avalanche. Fico acordada até às cinco, seis da manhã. Leio, vejo cassetes, tento não pensar. Mas as memórias não nos abandonam.” Dizia também que de nada se arrependia. “Fazia tudo igual. Agora já é passado, são apenas memórias. Mas foram 50 anos de grandeza, de glória.”

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Ashraf fotografada no seu apartamento em Nova Iorque, em Abril de 1980. Por trás, a fotografia do irmão Maurice Maurel/Corbis
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