Mesmo no funeral do agente Ramos houve centenas de polícias a virar as costas ao mayor

Dentro da igreja, uma semana depois do brutal assassínio dos polícias Ramos e Liu, falou-se de diversidade e fizeram-se apelos à reconciliação. Mas a polícia de Nova Iorque e o mayor da cidade ainda não fizeram as pazes.

O caixão de Ramos, coberto com a bandeira da polícia de Nova Iorque, à saída da igreja de Queens
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O caixão de Ramos, coberto com a bandeira da polícia de Nova Iorque, à saída da igreja de Queens Kevin Hagen/AFP
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Agentes da polícia viram-se de costas para o ecrã durante a intervenção de Blasio na cerimónia Shannon Stapleton/Reuters

Nova Iorque tem “provavelmente o melhor departamento de polícia do mundo”, disse o vice-presidente, Joe Biden, arrancando muitos aplausos no interior da igreja de Queens, demasiado pequena para o maior funeral da história desta polícia. Biden, o governador, Andrew Cuomo, e o mayor, Bill de Blasio, falaram da grande “família nova-iorquina” ali presente, enquanto o chefe da polícia de Nova Iorque, William Bratton, defendeu “a necessidade de reconciliação”. Todos foram aplaudidos, o mayor menos do que os outros.

Cá fora, uma multidão estimada em 25 mil pessoas, a maioria polícias, centenas vindos de fora do estado, espalhou-se por vários quarteirões para se despedir do agente Rafael Ramos, assassinado há uma semana com o seu parceiro, Wenjian Liu, dentro do seu carro de patrulha, numa rua de Brooklyn. O assassino anunciara no Instagram que queria vingar a morte de Eric Garner, um negro morto por asfixia numa rua de Staten Island por um grupo de polícias que o interpelou por suspeita de vender cigarros avulso.

O assassínio dos agentes abriu a maior crise em décadas entre a polícia da cidade e um mayor. Sexta-feira, enquanto milhares de pessoas faziam fila para homenagearem Ramos na igreja protestante Cristo Tabernáculo, um pequeno avião sobrevoava o rio Hudson com uma faixa onde de lia “Blasio nós viramos-te as costas” – segundo explicou a Associated Press o ex-polícia John Cardillo, a ideia foi de “um grupo de polícias, no activo e retirados” que queriam denunciar “a retórica incendiária” de Blasio.

Este sábado, enquanto o mayor falava, centenas de polícias que assistiam na rua viraram-se de costas para os ecrãs gigantes montados para que todos pudessem seguir a cerimónia. Blasio lembrou que Ramos, de 40 anos, “sonhava em ser polícia e esforçou-se para isso”, entrando para o departamento aos 37 anos, depois ter trabalhado como segurança em escolas. “Passou as últimas dez semanas da sua vida a estudar para ser capelão e foi levado no dia em que se ia formar”, disse ainda. Pouco depois, Bratton, o chefe da polícia, promoveu Ramos e Liu a detectives e anunciou que Ramos será declarado capelão honorário da esquadra 84th, onde trabalhava.

Ramos, casado e com dois filhos adolescentes, era um membro muito activo da sua igreja, como lembraram os vários pastores que intervieram na cerimónia, fazendo parte de um grupo de aconselhamento a casais. “Abençoados sejam os fazedores de paz”, afirmou o mayor, citando a Bíblia, antes de concluir dizendo que a cidade “está de luto pela morte de um dos seus melhores”.

As relações entre o mayor democrata (o primeiro não republicano eleito para o cargo em 25 anos) e a polícia da cidade nunca foram as melhores, com o departamento a reagir mal à sua defesa de uma relação mais conciliadora com a população. Em Agosto, um dos dois grandes sindicatos opôs-se a que Nova Iorque receba a Convenção Democrata, afirmando que a iniciativa de Blasio não era apropriada devido à “proliferação da criminalidade”, lembra o El País. Não é verdade: Nova Iorque continua a registar uma redução no crime.

O pior veio no início de Dezembro, quando um grande júri decidiu não acusar o agente que asfixiou Eric Garner. Os protestos contra a violência policial, que já tinham chegado a todo o país no Verão, quando o jovem Michael Brown foi morto a tiro pela polícia em Ferguson, no Missouri, explodiram em Nova Iorque. Blasio, casado com a escritora e activista negra Chirlane McCray, disse que a morte de Garner o fez pensar no filho, negro, revelando que o aconselhou a “ter precauções especiais” se tivesse problemas com a polícia.

Blasio pediu aos manifestantes para ficaram em casa até aos funerais dos agentes, mas os protestos continuaram e os activistas acusam a polícia de usar contra eles a execução de Ramos e Liu – afinal, Ismaaiyl Brinsley, o negro de 28 anos que disparou 20 balas contra os agentes era desequilibrado, feriu a namorada antes do crime e suicidou-se pouco depois.

Uma parte da polícia da cidade que elegeu Blasio responsabiliza-o pelo assassínio dos dois agentes. Patrick Lynch, líder de um dos maiores sindicatos de polícias da cidade, disse que “há sangue em muitas mãos”: “Esse sangue começa nos degraus da câmara municipal e no gabinete do mayor”, acusou.

50 origens e 64 línguas

Todos os que falaram no funeral centraram-se no carácter multiétnico de Nova Iorque, uma cidade com um departamento policial de 35 mil pessoas “de 50 origens diferentes e que falam 64 línguas”, lembrou o governador Cuomo. “Nova Iorque conhece muito bem estas questões. Conhecemos as dificuldades de lidar com diferentes etnias e raças. Mas também conhecemos a alegria de o fazer”, afirmou, lembrando que “Ramos, um hispânico, tinha como colega Liu, um asiático”.

“Acredito que a força policial desta cidade incrivelmente diversa vai mostrar à nação como ultrapassar qualquer divisão”, disse Biden, num discurso emocionado em que elogiou a coragem dos nova-iorquinos, uma cidade que descreveu como “um milagre caótico”, que só o trabalho da sua polícia torna possível. Cuomo deixou a mesma mensagem: “Vamos resolver as diferenças entre nós. Isso é o que nós fazemos como nova-iorquinos, pegamos na adversidade e resolvemo-la”.

                                                               

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