Médicos foram "cúmplices" de abusos e tortura em Guantánamo e prisões da CIA

Estudo do Instituto de Medicina dos Estados Unidos e da Fundação Open Society de George Soros diz que os profissionais de saúde se envolveram em actos de tortura e alimentação forçada de detidos em greve de fome.

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Guantánamo é um dos centros de detenção dos EUA citados no relatório Brennan Linsley/AFP

Em vez de cuidarem e vigiarem a saúde dos presos – tarefa para a qual tinham sido chamados – os médicos e enfermeiros, destacados para Guantánamo e outros centros de detenção do Departamento da Defesa norte-americano e da CIA, depois do 11 de Setembro, foram cúmplices dos abusos aí praticados, acabando por se envolver nas práticas de “tortura e tratamento cruel, desumano e degradante”. Algumas "distorções ainda persistem" hoje.

A conclusão consta de um estudo independente do Instituto de Medicina e a Fundação Open Society de George Soros, relativo aos anos que se seguiram aos atentados 11 de Setembro de 2011, sobre os profissionais de saúde a trabalhar sob ordens militares dos Estados Unidos, e divulgado esta segunda-feira. O pessoal médico não só participou como se envolveu na própria concepção das práticas de tortura nesse período em que os suspeitos de terrorismo começaram a ocupar as celas das prisões da CIA (serviços secretos), de Guantánamo em Cuba, ou no Afeganistão, denuncia o relatório. Pentágono e CIA refutam as acusações e dizem que o relatório contém imprecisões e erros.

O estudo abrange diversas práticas de coerção mas centra-se na alimentação forçada de presos em greve de fome ou nos métodos violentos de interrogatório, como a simulação de afogamento (waterboarding) em centros de detenção secretos, que foi entretanto banida. A alimentação forçada, essa, persiste.

“Fica claro [nesta investigação] que, em nome da segurança nacional, os militares ignoraram o código de ética dos profissionais da saúde e estes passaram a funcionar como agentes dos militares e a praticar actos contrários à regra e à ética [profissionais]” internacionais e em vigor nos Estados Unidos, afirmou o co-autor do estudo Gerald Thomson, professor de Medicina emérito na Universidade de Columbia, nos EUA, citado pelas agências e jornais americanos. Os médicos, enfermeiros, psicólogos e outro pessoal destacado para assistir os doentes, ajudaram a conceber, permitiram e participaram em práticas desumanas contra os detidos, denunciam.

"O Departamento de Defesa e a CIA alteraram as regras de ética fundamentais para facilitar a participação de profissionais de saúde em abusos contra detidos. Foi isso que aconteceu. E essas distorções ainda existem", disse por seu lado Leonard Rubenstein, também co-autor, ao programa da BBC Newsday. Rubenstein denunciou exemplos em que os profissionais de saúde são chamados aos interrogatórios "para procurar vulnerabilidades que os agentes que interrogam possam explorar".

A investigação foi realizada por militares e peritos legais, especialistas em questões de saúde e ética, e centra-se em especial no papel que desempenharam os profissionais de saúde na alimentação forçada de presos em greve de fome, com tubos, o que já tinha sido questionado pela Associação dos Médicos dos Estados Unidos em Abril deste ano, quando metade dos 166 prisioneiros de Guantánamo estavam em greve de fome.

Em Junho, uma juíza declarou não existir jurisdição que lhe permita impedir essa prática forçada em Guantánamo, mas notou que o Presidente Barack Obama podia fazê-lo.

O encerramento da prisão de Guantánamo foi uma das primeiras promessas que Obama fez pouco depois de tomar posse em 2009 – uma promessa, até agora por cumprir, perante o que o próprio diz serem a oposição no Congresso e a dificuldade em encontrar países dispostos a receberem estes suspeitos ou acusados de terrorismo.

Dean Boyd, responsável das relações públicas da CIA, lembrou, citado pela BBC e agências, que a CIA já não tem nenhum detido sob sua custódia e que o Presidente Obama alterou em 2009 o Programa de Rendição, Detenção e Interrogatório, implementado durante a guerra ao terror do ex-Presidente George W. Bush que previa a transferência de suspeitos de terrorismo para países onde é permitida por lei a tortura para efeitos de interrogatório. A alteração de Obama impôs garantias de que essa transferência para outros Estados se faz respeitando as leis dos Estados Unidos.

“A política relativa aos que não se alimentam está somente focada em preservar a vida e a saúde dos detidos sob custódia do Departamento de Defesa norte-americano”, reagiu o porta-voz Todd Breasseale. “O Departamento não pode, em consciência, deixar um detido suicidar-se. Seja com uma arma, medicamentos, fome auto-infligida ou imposta por outros.”

Este porta-voz referiu por outro lado que nenhum membro da comissão de investigação teve acesso aos detidos, os seus registos médicos ou às práticas de Guantánamo. E elogiou os médicos e enfermeiros de Guantánamo como “incansáveis profissionais a trabalhar sob condições terríveis de stress, longe de casa e da família, e com doentes, por vezes, extremamente violentos”.  

 
 

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