Madrid: A magistrada que se vê como “autarca cuidadora”

Aos 71 anos, a ex-juíza que passou a vida a combater a corrupção aceitou encabeçar uma lista cidadã. Apresentou propostas e ouviu as pessoas. Os madrilenos que não sabiam aprenderam quem é Manuela. Muitos votaram na sua candidatura.

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Mais de mil artistas quiseram desenhar Manuela Carmena Juan Medina/Reuters

Num dos vídeos mais partilhados da campanha Ahora Madrid, a candidatura cidadã liderada por Manuela Carmena e apoiada pelo partido Podemos, Arantxa Freire, 39 anos, uma das centenas de pessoas que se voluntariaram para ajudar a eleger a ex-juíza diz: “Quando for grande, quero ser Manuela”. Não é a única. A futura presidente da câmara de Madrid inspira, pelo percurso, postura, independência, e é essa a sua força.

Candidata reticente e pouco conhecida do grande público, empenhada noite e dia depois de ser a mais votada nas primárias do Ahora Madrid, a 31 de Março, Carmena nunca tinha pensado voltar à política, muito menos com este protagonismo. Longe estão os tempos em que militava no Partido Comunista, quando isso era arriscar muito. O país vivia a ditadura de Franco e Carmena, jovem advogada, defendia operários e presos políticos.

Juan Cruz, jornalista e escritor, hoje director-adjunto do diário El País, nasceu nas ilhas Canárias há 68 anos e lembra-se da passagem de Carmena por La Palma, já como juíza. “Deixou a memória do seu dom, a simpatia: recebia funcionários irritados, prostitutas maltratadas e a todos tratava com paciência”, escreve. Foi por essa altura que Carmena pôs fim a uma tradição que parecia inabalável, a astilla (literalmente lasca, ou “tirar proveito de”), o pagamento fraudulento a funcionários judiciais. Não foi muito bem tratada entre a sua classe. Quando a tentavam humilhar, conta Cruz, “sorria em silêncio”.

Juíza emérita do Tribunal Supremo de Espanha, fez da batalha da sua vida a luta contra a corrupção e o abuso de poder. Ganhou o Prémio Nacional dos Direitos Humanos em 1986, foi relatora das Nações Unidas e representou Espanha no Grupo de Trabalho contra as Detenções Arbitrárias na mesma organização.

A sua energia, dizem os que com ela trabalharam, provoca empatia, é “um fogo tranquilo”. Os madrilenos que assistiram aos embates que travou com Esperanza Aguirre, candidata do Partido Popular ao município, puderam comprová-lo. Nos debates, Aguirre gritou e foi agressiva, Carmena manteve-se composta e serena, quase como se tentasse acalmar a opositora.

Aguirre acusou-a de ter “defendido etarras” e tentou envolvê-la num problema que o seu marido enfrentou, a falência de uma empresa de arquitectura de que era sócio, mesmo sabendo que a justiça considerara a sua actuação “legítima”. Carmena viu-se obrigada a comentar o caso. O marido, disse, teve um azar num sector em que “tantos como ele” sofreram com a “terrível crise provocada pela bolha imobiliária”.

Recusou usar o mesmo tipo de armas – e podia tê-lo feito. Aguirre esteve directamente envolvida em casos de corrupção que prescreveram e ocupou altos cargos, incluindo a presidência da comunidade de Madrid, quando decorriam desvios de fundos, fraudes e o PP era financiado ilegalmente, tudo processos que agora estão nos tribunais. “Nunca escolheria esse caminho”, disse Carmena, explicando ter-se candidatado para “discutir programas, alternativas e como podemos acabar com a praga que significa a corrupção.”

“Isto eu sei fazer”
“Ela é amiga do director, veio cá várias vezes antes de ser candidata”, disse ao PÚBLICO José Pablo Ferrándiz, principal investigador e vice-director do instituto de sondagens Metroscopia. “Estava indecisa. Creio que avançou quando soube que o PP tinha nomeado Aguirre, não suportou a ideia de ver a mulher que representa tanto daquilo contra o qual ela passou a vida a lutar de regresso a Madrid”, comenta.

“Eu querer não queria. Mas começas a ver que podes ser necessária. Sei que sei fazer isto. Sei que canto muito mal, que danço muito mal… Mas isto sei fazer. Sei que gosto da gestão pública e parece-se que o faço bem. Sabia que tinha o perfil que muitas pessoas procuravam”, disse Carmena. “Quero ser a ponte entre uma democracia velha e os que querem um novo modelo democrático.”

Pablo Ferrándiz acompanhou a campanha, as iniciativas em que Carmena ouvia mais do que falava e os debates, com os ataques de Aguirre. “Nota-se que lhe custa. Estes ataques pessoais deixam mossa, ela não está preparada. Os políticos têm calo, estão habituados a tudo. Mas ela, claro, não é política.” É, mas de outro tipo.

Carmena não foi a mais votada, mas a noite de domingo foi de muitos nervos na festa preparada pela candidatura, junto ao Parque do Retiro. Durante horas, a contagem dava-a empatada com Aguirre, com ambas a elegerem 20 vereadores. Os apoiantes, como Arantxa Freire, gritavam “Sí, se puede”, a frase cunhada pelo 15M e olhavam para o ecrã onde a percentagem de boletins contados ia crescendo.

A ex-ministra do PP acabou por eleger 21 vereadores, Carmena 20, uma diferença de 40 mil votos numa cidade de 4,6 milhões de eleitores (às urnas foram perto de 65%). A maioria absoluta obtém-se com 29 lugares: o PSOE, que conseguiu nove lugares, já foi abordado por Aguirre mas garante que “não entra nas opções” socialistas permitir que a capital continue nas mãos dos conservadores, que aqui são senhores absolutos há 24 anos.

Nem um minuto
Todos dão como certo um governo da ex-juíza com o apoio dos vereadores socialistas. “Penso que vou ser a próxima alcadesa de Madrid”, disse Carmena na segunda-feira, justificando assim o facto de já ter começado a trabalhar.

A sua primeira reunião foi com o juiz presidente do Tribunal de Justiça de Madrid, com quem quis começar a discutir a criação de um gabinete para travar os despejos. “Fiquei muito contente porque a ideia lhes pareceu estupenda. Não podemos perder nem um minuto. Queremos começar a trabalhar já.”

A campanha travada com recurso a microcréditos e doações pessoais e na qual se gastou 200 mil euros (contra os 20 milhões que o PP tinha para comícios e propaganda na região de Madrid), provou a Carmena que tem mesmo “o perfil que muitas pessoas procuravam”. Os voluntários apareceram de todas as áreas, da academia aos precários.

Nenhum cartaz de Carmena era maior do que um A2, mas nos últimos dias de campanha não paravam de surgir por todos os bairros. Nalguns, via-se a sua fotografia, noutros frases suas e o pedido: “Madrid merece Manuela Carmena. Vai e espalha a palavra”.

“Quero que a democracia seja o que tem de ser e que nunca mais regresse a vergonha da corrupção”, lia-se num cartaz. “Há tantas possibilidades de ter uma vida digna. Como é que podemos não tentar?”, dizia outro. Para além de frases, as letras verdes sobre um fundo branco lembravam acções de Carmena, como o fim dos subornos aos funcionários judiciais, nos anos 1980, quando era juíza de primeira instância, ou quando, na década seguinte, depois de eleita vogal do Conselho Geral do Poder Judicial “renunciou ao carro oficial e foi a única dos quatro vogais a votar contra um aumento de salário”.

Criatividade e cidadania
Carmena, ou Manuela como todos se referem à ex-juíza, também inspirou os artistas. Uma semana antes das eleições, as redes sociais foram inundadas por retratos seus, assinados por mais de mil pintores, designers, ilustradores, estilistas, de todas as cores e com todos os estilos. Numa imagem aparece na sua bicicleta (é ciclista) no meio de uma praça; noutra surge com orelhas de gato e a frase: “Os gatos já precisam de uma heroína”. Também a desenharam agarrada a um peluche. “Sim, poderia ser uma alcadesa cuidadora”, comentou.

Carmena agradeceu a “homenagem” espontânea na sua página de Twitter. Nas entradas do metro das Portas do Sol, um destes retratos, recortado e com a frase “Manuela, és o nosso sol”, apareceu pendurado no fim-de-semana da ida às urnas.

Carmena tem cinco medidas urgentes para os 100 primeiros dias de governação: paralisar os despejos e a privatização dos serviços públicos, garantir o fornecimento de serviços básicos (água e electricidade) a quem não possa pagá-los, rever os impostos sanitários e lançar um plano urgente de emprego.

Muitos madrilenos acreditam nela. A sua candidatura foi a mais votada em onze dos 21 distritos da capital e não há dúvidas sobre quem mais votou na magistrada: Arganzuela, Carabanchel, Centro, Latina, Moratalaz, San Blas, Usera, Vicálvaro, Villa de Vallecas e Villaverde, as zonas mais humildades da cidade.

“Esta campanha foi histórica e vamos recordá-la para sempre. Frente ao livro de cheques, a única moeda que usámos foi a da criatividade e a da cidadania”, afirmou, quando conheceu os resultados e falou, por fim, à multidão em Madrid. “A vitória é vossa”.

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