Londres avança para "hard Brexit" mas recusa ser punida pela UE

Theresa May anunciou que o Reino Unido vai sair do mercado único, mas espera negociar um acordo que lhe garante "o maior acesso possível" ao espaço europeu. Acordo final será votado no Parlamento.

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Facundo Arrizabala/EPA

Há meses que lhe pediam uma prova de que o Governo britânico tinha um plano para as negociações que está prestes a iniciar com a União Europeia. Nesta terça-feira, Theresa May respondeu ao repto e revelou os seus objectivos para o “Brexit”, confirmando a decisão, que já se anunciava, de abandonar o mercado único europeu. Aos ainda parceiros deixou garantias de que não está a virar costas nem deseja o fracasso da União, mas ao mesmo tempo avisou que qualquer tentativa de punir Londres pela decisão de sair seria um “calamitoso acto de automutilação” para a Europa.

Foi na Lancaster House, um palacete do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que May começou a delinear aquela que será uma viragem histórica para a economia britânica. Uma escolha que não foi feita ao acaso. Foi naquele exacto local que, em Abril de 1988, a então primeira-ministra Margaret Thatcher proferiu um discurso louvando os benefícios do nascente mercado único – “Teremos acesso directo e sem entraves ao poder de compra de mais de 300 milhões das pessoas mais ricas e prósperas em todo o mundo. Um mercado maior do que o Japão, maior do que os EUA. À nossa porta”.

Os 300 milhões cresceram para mais de 500 milhões, os 11 parceiros de então aumentaram para 27, a economia britânica tornou-se uma das mais prósperas da UE, canalizando investimento, fazendo nascer em Londres uma das maiores praças financeiras em todo o mundo. Com o crescimento vieram centenas de milhares de trabalhadores europeus, transformando a imigração no detonador para o “Brexit”.

Desde Outubro, quando disse no congresso do Partido Conservador que iria dar prioridade ao controlo da imigração, que se adivinhava que o Governo britânico se encaminhava para um “hard Brexit”, mas até agora May insistia que não se tratava de uma escolha binária. Só que os líderes dos restantes 27 países mantiveram-se irredutíveis: sem livre circulação de pessoas, um dos quatro pilares do mercado único, Londres perderia o direito a comprar e vender, a negociar contratos ou oferecer os seus serviços financeiros sem qualquer entrave no espaço europeu.  

May reconheceu-o agora, tal como admitiu que se o país quisesse manter-se no mercado único, estando fora da UE, teria de aceitar regras sobre as quais não tem poder de voto e seria obrigado a aceitar a jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça, o que ela sempre rejeitou. “Para todos os efeitos isto significaria que não iriamos deixar a UE.”

Não se tratou, no entanto, de uma capitulação. Se o Reino Unido não pode ser membro do mercado único, May vai batalhar por um “acordo de livre comércio, abrangente e ambicioso com a UE” que lhe garanta “o maior acesso possível” aos consumidores europeus – um entendimento que, deixou claro, gostaria que abrangesse a indústria automóvel e desse à City londrina “liberdade para fornecer serviços financeiros através das fronteiras”.

A primeira-ministra britânica adiantou ainda que, apesar da prioridade que dá à negociação de acordos comerciais com países terceiros, gostaria que o país pudesse manter-se parcialmente ligado à união aduaneira europeia, a fim de garantir “um comércio livre de tarifas e com o mínimo de fricção possível”. Da mesma forma, admitiu manter o financiamento a “programas europeus específicos” e assegurou que o Reino Unido quer garantir, tão cedo quanto possível nas negociações com Bruxelas, os direitos dos cidadãos europeus que vivem no país.

“A decisão de sair da UE não foi uma rejeição dos valores que partilhamos, nem o desejo de nos tornarmos mais distantes dos nossos amigos e vizinhos”, assegurou May dirigida à plateia onde se sentavam, além dos seus ministros, vários embaixadores estrangeiros. “Queremos continuar a ser parceiros fiáveis […] queremos comprar os vossos produtos e vender-vos os nossos, num comércio tão livre quanto possível.”

As primeiras reacções foram comedidas, prudentes. Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, que encabeçará a UE no processo de saída do Reino Unido, saudou o discurso “mais realista” de May; o chefe da diplomacia alemã, Frank-Walter Steinmeier, destacou a “parceria construtiva” prometida pela primeira-ministra britânica. O antigo chefe da diplomacia sueca Carld Bildt lamentou que o Reino Unido tenha optado por uma relação com a UE que “é algo ligeiramente inferior ao acordo de parceria com a Ucrânia”.

O que quase todos optaram por não referir foram os caminhos alternativos que a líder britânica admitiu explorar se não considerar satisfatório o resultado das negociações. “Quero deixar claro que para o Reino Unido é melhor não haver um acordo do que [aceitar] um mau acordo”, disse, aludindo a uma saída desordenada que seria tão prejudicial para Londres como para a UE. Um aviso que levou mais longe ao sugerir que, se Bruxelas lhe negar o acesso ao mercado único, “o Reino Unido ficará livre para mudar a base do seu modelo económico”, adoptando “taxas competitivas e políticas que iriam atrair as melhores empresas e os maiores investidores”.

Esta ameaça, disse Philippe Lamberts, co-presidente dos Verdes no Parlamento Europeu, representa “uma chapada na cara de todos os que querem negociar uma nova relação entre a UE e o Reino Unido que preserve não só a cooperação económica, mas outros elementos positivos da política social europeia”. Também Jeremy Corbyn, o líder dos Trabalhistas, acusou a primeira-ministra de querer transformar o país num “paraíso fiscal barato” que terá como primeiras vítimas os trabalhadores britânicos.

Dentro de dias, o Supremo Tribunal britânico decidirá se o Governo pode accionar o artigo 50 [do Tratado de Lisboa]  sem o aval do Parlamento – o mesmo que May promete que vai votar, com carácter vinculativo, o acordo final negociado com Bruxelas, ainda que nessa altura a única opção disponível seja a saída sem acordo. Depois, os restantes 27 Estados-membros terão de decidir uma posição comum para negociar com Londres. “Este foi efectivamente o último grande momento em que May deteve o controlo político antes de o artigo 50 ser accionado”, escreveu o colunista do Guardian John Harris. Quando as negociações efectivamente começarem “o discurso de hoje parecerá vindo de outra era”. 

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