O “pai” da Constituição “ficaria aterrado” se soubesse da espionagem da NSA

Recolha de dados em larga escala é considerada "atentado à vida privada". Caso segue para recurso.

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Instalações da NSA em Bluffdale, a sul de Salt Lake City Jim Urquhart/REUTERS

O programa da Agência Nacional de Segurança (NSA) que põe sob vigilância as comunicações dos cidadãos norte-americanos de forma indiscriminada é “provavelmente inconstitucional”, considerou um juiz de um tribunal de Washington, no que pode ser o início de um importante debate legal sobre a vigilância e a privacidade.

“É evidente que este programa viola” os valores da quarta da Emenda da Constituição Americana, relativos à protecção da vida privada, escreve o juiz Richard Leon na sentença. O “pai” da Constituição, James Madison, “ficaria aterrado” se soubesse deste programa, desta tecnologia “quase orwelliana”, com ambições de tudo conhecer, tudo relacionar, de forma a saber ainda mais do que o conteúdo das comunicações — o mais interessante são as relações entre as pessoas que comunicam, a forma como comunicam, os chamados metadados.

O juiz federal, nomeado em 2002 por George W. Bush, determinou que a NSA não pode continuar a recolher informação sobre os dois queixosos através das suas contas no operador telefónico Verizon: o advogado conservador Larry Klayman e Charles Strange — pai de um criptólogo da NSA morto no Afeganistão em 2011 que suspeita que a NSA o pôs sob escuta depois de ter feito declarações críticas contra o exército americano. Ambos demonstraram que as escutas da agência são “arbitrárias” e “sem discernimento” e violam as garantias da Quarta Emenda constitucional.

O juiz rejeitou o precedente legal de um caso considerado pelo Supremo Tribunal em 1979, que é usado nos próprios fundamentos da NSA, que considerou que os metadados não são protegidos pela Quarta Emenda, explica a revista Foreign Policy. “A ubiquidade dos telefones alterou de forma drástica a quantidade de informação que hoje está disponível e, mais importante, qual o tipo de informação que o Governo pode obter sobre a vida das pessoas”, escreveu o juiz Leon. “Não posso navegar as águas não cartografadas da Quarta Emenda usando como minha Estrela Polar um caso que data de antes da ascensão dos telemóveis.”

“O Governo não cita um único exemplo de situação na qual a recolha em massa de metadados terá permitido travar um ataque [terrorista] iminente”, considerou o juiz.Mas a sentença não terá efeito de imediato. Por entender que o assunto transcende a sua jurisdição, o próprio juiz suspendeu a execução da sua decisão — devido aos “interesses significativos da segurança nacional em causa” e à questão constitucional — e encaminhou o dossier para outro tribunal, na expectativa de um previsível recurso da Administração. Outras instâncias “devem debater para encontrar um equilíbrio que respeite o nosso sistema constitucional”, refere.

Se este caso chegar de facto a um tribunal de recurso, como é provável que aconteça, alguns observadores consideram que poderá ser tão importante para definir a ética da vigilância maciça electrónica como o Julgamento de Scopes, em 1925, foi definidor para estabelecer a questão da evolução no ensino público norte-americano: “Um debate apaixonante que já devia ter tido lugar há algumas décadas, sobre se a vigilância maciça, com meios tecnológicos ainda é compatível com os princípios constitucionais da privacidade e da liberdade”, escreve Shane Harris, na revista Foreign Policy.

Face à indignação suscitada pelas revelações sobre a NSA — feitas pelo analista informático Edward Snowden — o Presidente Barack Obama encarregou um grupo de peritos de reflectir como reformar os programas da agência. Esta terça-feira, o grupo entregou o seu relatório ao Presidente; dele fazem parte 40 recomendações para melhor proteger a privacidade dos cidadãos.

Entre as medidas recomendadas estão, segundo a imprensa americana, a supervisão directa da Casa Branca sobre a lista de líderes estrangeiros cujas comunicações são vigiadas, uma consequência directa do escândalo diplomático provocado pela revelação escutas da Presidente do Brasil, Dilma Rousseff, e da chanceler alemã, Angela Merkel.

Obama recebeu também na Casa Branca 15 líderes de grandes empresas de tecnologia norte-americanas — o objectivo era discutir formas de recuperar o site onde os americanos devem ir procurar um novo seguro de saúde, no âmbito da reforma feita pelo Presidente, e que tem dado tantos problemas, mas a visita ganhou um novo impulso com a sentença do juiz Leon.

Empresários como Tim Cook da Apple, Dick Costolo da Twitter, Eric Schmidt da Google, Sheryl Sandberg do Facebook, ou Marissa Mayer da Yahoo estiveram com Obama e emitiram um comunicado dizendo-se “satisfeitos por terem tido a oportunidade de partilhar directamente com o Presidente os nossos princípios sobre a vigilância governamental e incentivá-lo a fazer reformas agressivas”.

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