Isto não tem de ser assim

A cada vez que há novas tragédias no Mediterrâneo, muitas pessoas têm a sensação de que o que se passa é uma fatalidade, algo contra o qual muito pouco podemos fazer, um fenómeno incontrolável e regular como as estações do ano.

Nada disto é verdade. Há abordagens que permitem minimizar — e até erradicar — os naufrágios de migrantes no Mediterrâneo e as suas consequências. Há enquadramento legal europeu que permite pelo menos começar esse trabalho, e facilmente poderia haver legislação abrangente para lidar globalmente com esta questão. E há até dinheiro no orçamento comunitário para financiar estas operações.

O que falta? Vontade política e assunção de responsabilidades. Mas já lá iremos.

Em primeiro lugar, importa precisar que os náufragos do Mediterrâneo não são “ilegais” nem “clandestinos”. Até os recebermos e processarmos os seus casos, são migrantes — simples humanos deslocados. A Convenção de Genebra sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951, e de que todos os países europeus são signatários, não permite repelir ou rechaçar estas populações antes de chegarem às nossas fronteiras (princípio de “non refoulement”, ou não-repatriamento) e serem inquiridos pelas autoridades competentes. Só depois se pode precisar se estamos a falar de refugiados, requerentes de asilo ou emigrantes voluntários, e só neste último caso o repatriamento pode ser aplicado.

Em segundo lugar, importa notar que uma grande proporção dos náufragos no Mediterrâneo é, quase de certeza, de refugiados. Com guerras, ditaduras e conflitos por vezes atrozes pelo menos na Síria, Eritreia, Iraque, Líbia, Palestina, Egito e Etiópia, há razões bem fundadas para admitir que muitos dos procedentes destes países estejam em condições legais de serem reinstalados na União Europeia.

Em terceiro lugar, algumas destas pessoas pertencem a categorias prioritárias que já deveriam estar a ser reinstaladas. Estamos a falar dos mais vulneráveis entre os vulneráveis: mulheres e crianças vítimas de violência sexual, pessoas sob ameaça de morte, ou padecentes de doenças que não podem ser tratadas nos campos de refugiados ou nos países de trânsito. As leis da União Europeia sobre o Fundo Europeu de Refugiados (hoje Fundo para o Asilo e Migração), de que sou um dos co-autores, reservam um orçamento específico para estes casos prioritários, amplamente suficiente para reinstalar bem mais do que todos os mortos no Mediterrâneo, e que é majorado para os países que queiram pela primeira vez fazer reinstalação de refugiados (em 2013, o remanescente deste dinheiro foi até especificamente destinado a países como Portugal e a Irlanda, mais afetados pela crise).

E aqui chegamos ao ponto da vontade política. Muitos países do centro da Europa — alguns deles beneficiários de generosas políticas de acolhimento de refugiados no passado — temem o impacto político destas soluções, e acima de tudo opõem-se à aplicação do “princípio da solidariedade” (art. 80 TFUE) nas políticas europeias sobre migrações.

Portanto, quando falamos de “inação europeia”, deveríamos antes falar de “inação dos estados europeus”. Mas não tem de ser assim. Espero que Portugal aja de forma diferente e se disponibilize para receber os sobreviventes do naufrágio deste domingo. O sinal político seria importante.

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