Israel expulsa imigrantes negros num crescendo de linguagem racista

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Nos últimos anos, cerca de 60.000 africanos chegaram a Israel Baz Ratner/Reuters

A expulsão de imigrantes sudaneses ilegais, descritos por políticos como "um cancro", chocou Erika Davis, uma negra americana convertida ao judaísmo. "Será que os judeus se esqueceram do seu passado?"

No mesmo dia em que os primeiros 120 imigrantes ilegais eram repatriados de Israel para Juba, capital do Sudão do Sul, Erika Davis - uma "orgulhosa judia, negra e lésbica" de Brooklyn (Nova Iorque) - questionava se estes africanos teriam o mesmo destino "se fossem brancos".

Mais do que a expulsão, iniciada faz hoje uma semana, o que mais escandalizou Erika, membro de uma organização não-governamental nos Estados Unidos, foi alguns responsáveis políticos israelitas, incluindo o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, terem insultado os imigrantes como "um cancro no nosso corpo", "uma praga nacional", "uma ameaça, por serem muçulmanos - a doença mais terrível que há no mundo", "um vírus que pode explodir a qualquer momento".

Das cerca de 60 mil pessoas que pediram asilo em Israel, menos de 1000 são oriundas do Sudão do Sul, país recém-nascido após a divisão do Sudão entre o Norte, árabe-muçulmano, e o Sul, cristão e animista, referem grupos de apoio como a Hotline for Migrant Workers. A maioria dos que atravessaram a península egípcia do Sinai em busca de segurança - homens, mulheres e crianças - provêm da Eritreia ou de zonas do Sudão como o Darfur, onde as suas vidas correm perigo se voltarem às suas casas.

Depois de vários dos indesejados terem sido vítimas de ataques em Telavive - casas queimadas, espancamentos e outras agressões - uma sondagem conduzida pelo Israel Democracy Institute indicou que 53% dos israelitas se identificam com as declarações dos seus políticos. Após a primeira deportação, o ministro do Interior, Eli Yshai - filho de judeus mizrahi (originários do Médio Oriente, do Magrebe ao Irão) que emigraram da Tunísia -, anunciou que as detenções de ilegais, 300 até agora, "são apenas o começo".

"Será que em 60 anos de existência, o moderno Israel se esqueceu da sua História de perseguição, de guetos, campos de extermínio e refugiados?", revolta-se Erika Davis, autora do blogue black, gay and jewish, falando com o PÚBLICO, por telefone. "É chocante! Estamos sempre a repetir que não devemos esquecer-nos, mas parece que agora Israel vive em estado de amnésia total."

Filha de dois protestantes, mãe baptista e pai metodista, educada durante 12 anos numa escola católica, Erika Davis converteu-se ao judaísmo há um ano, numa sinagoga da congregação da Reforma (mais progressista do que a Ortodoxa). Antes, ironiza, foi uma "hippie pagã, uma aspirante a budista e uma ateia desleixada". Começou a distanciar-se do cristianismo quando tinha 21 anos (hoje tem 32), porque os seus pastores, ao contrário do seu rabi, lhe respondiam que "ia para o inferno se duvidasse que Deus criou o mundo em sete dias" ou questionasse outros dogmas.

"A religião judaica não é racista", frisa Erika. "As pessoas é que estragam tudo. Sempre houve judeus negros, com diferentes tradições, línguas e culturas - e isso é uma das belezas do judaísmo. Não é maravilhoso que os judeus etíopes tivessem preservado a sua fé até hoje? A realidade é que, em Israel e na América - sobretudo aqui devido à nossa história de segregação racial e escravatura -, prevalece a imagem do judeu branco e askhenazi [de origem europeia]. Pele branca é igual a privilégio branco."

"Se eu perguntar aos meus amigos negros judeus, de nascimento ou convertidos, se os judeus são racistas, todos responderão que sim", lamentou Erika. "Citarão o modo como os árabes são tratados em Israel e a situação dos imigrantes sudaneses ilegais. Lembrar-se-ão de palavras odiosas que ouviram numa sinagoga ou na única yeshiva [escola talmúdica] para negros. A mim já me aconteceu estar num colégio para crianças judias, de 10-11 anos, e ser confundida com uma ama, porque os miúdos não são ensinados a reconhecer a diversidade no judaísmo."

Metáforas genocidas

Ser olhada "com suspeição, apenas por causa da cor da pele" não abala a fé de Erika Davis. "Há muita hipocrisia também no cristianismo e essa foi uma das razões por que me aproximei do judaísmo, de onde emanaram as religiões monoteístas. Gosto da minha nova espiritualidade. Não foi um retrocesso deixar de aceitar Jesus como um Messias. Afinal, ele era um judeu, e morreu como judeu. Não acredito em utopias; em salvadores do mundo. Os judeus não são um povo perfeito - isso não existe!"

A associação Jewish Federations of North America (que representa 157 federações e 400 redes comunitárias nos EUA, angariando anualmente 3000 milhões de dólares para serviços sociais e educativos) nomeou, este ano, Erika Davis como Jewish Community Hero. Valorizou, assim, os seus esforços para "tratar os estranhos como seres humanos, porque também os judeus no Egipto foram estranhos em terra estrangeira."

A blogger planeia elaborar um currículo para escolas judaicas nos EUA. Quer que os alunos que partilham a sua religião aprendam que há hebreus brancos e negros." No entanto, concede, se já "será complicado" apresentar esta proposta na América, "é praticamente impossível" levá-la para Israel. Neste país, a hostilidade para com os imigrantes africanos tem motivações "mais políticas do que religiosas", e estas têm sido encorajadas por antigos imigrantes, judeus da extinta União Soviética.

Num artigo no diário hebraico Ha'aretz, o judeu americano-israelita Roi Ben-Yehuda, investigador em Resolução de Conflitos na Universidade de Columbia (EUA), lembra, a propósito das declarações xenófobas sobre os imigrantes africanos, que "todos os genocídios foram precedidos do uso instrumental da linguagem para desumanizar e demonizar uma determinada população - o Holocausto, o pior dos casos, mas também o Ruanda e o Camboja, no tempo dos khmer vermelhos."

"Definir alguém como doença, acima de tudo doença terminal, é torná-lo não-humano, repugnante e perigoso: algo que é mutante e se alimenta de nós", criticou o autor do blogue roiword.wordpress.com, citando um excerto do ensaio Illness as Metaphor, de Susan Sontag, escrito em 1977, após lhe ter sido diagnosticado um tumor: "Descrever um fenómeno como cancro é um incitamento à violência. O uso do cancro no discurso político encoraja o fatalismo e justifica medidas "severas", assim como reforça a noção que a doença é necessariamente fatal. Embora as metáforas de doença nunca sejam inocentes, a metáfora do cancro é a pior de todas, porque implicitamente genocida."

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