Iraque: "uma linha na areia" a desfazer-se?

Vão deixar mais linhas traçadas a sangue na areia e prolongar (o já grande) sofrimento da população iraquiana.

1. Os actuais acontecimentos no Iraque fazem-nos questionar se, com a violenta luta fratricida desencadeada nas últimas semanas, o Estado não estará à beira da desagregação e colapso.

É também inevitável recordarmos o passado conturbado da região, seja o mais recente – a invasão norte-americana de 2003 que depôs Saddam Hussein –, seja o mais longínquo historicamente. Há, claro, a mortífera rivalidade entre sunitas e xiitas que envenena o Islão desde o seu nascimento no remoto século VII. Esta tem, no Iraque, um terreno de batalha privilegiado, sobretudo pelas memórias e simbolismo histórico-religioso-identitário do xiismo. Ironias da história, a rivalidade parece hoje tão viva como há catorze séculos atrás quando se iniciou a luta pela sucessão do Profeta Maomé. O problema interliga-se, no mundo atual, com as lutas de poder pela primazia no mundo árabe-islâmico. Os rivais mais encarniçados dessa disputa, feita abertamente e/ou por “procuração”, são iranianos e sauditas. O Hezbollah do Líbano é um instrumento conhecido do Irão; diversos grupos jihadistas que atuam na guerra da Síria são, provavelmente, financiados e instrumentalizados pela Arábia Saudita. Interliga-se, também, com os interesses frequentemente contraditórios, devido às suas múltiplas “clientelas”, das grandes potências globais, sendo o caso dos EUA o mais óbvio, mas também, em graus variáveis, da Rússia e da China.

2. Todavia, no último século, provavelmente o acontecimento mais marcante do rumo dos acontecimentos foi o acordo Sykes-Picot, de 9 de maio de 1916, feito em plena I Guerra Mundial. O acordo deve o seu nome aos seus principais negociadores nos bastidores: os diplomatas e administradores coloniais, Mark Sykes da Grã-Bretanha e François Georges-Picot da França. Foi inicialmente concebido como um tratado informal e secreto, entre Grã-Bretanha e a França, feito com a concordância da Rússia. Visava a partilha das províncias árabes do Império Otomano no actual Médio Oriente. (Acabou por ser tornado público após a vitória dos bolcheviques na revolução russa de Outubro de 1917, que o publicaram por vingança contra os ex-aliados da Rússia czarista). Nos termos do acordo, a França ficou com a sua zona de influência e/ou controlo directo essencialmente concentrada nos territórios dos atuais Líbano e Síria. Quanto à Grã-Bretanha, a sua zona influência e/ou controlo directo seria o sul da Mesopotâmia, incluindo Bagdade, a Transjordânia e os portos mediterrânicos de Haifa e Acre, ou seja, grosso modo os atuais territórios de Israel/Palestina, Jordânia e Iraque. A integração da parte norte do território, a região de Mosul, foi objeto de um duplo contencioso vencido pelos britânicos. Primeiro aos franceses, aquando da ocupação de facto do território no final da I Guerra Mundial, pois a região estava inicialmente prevista como zona de influência da França, no acordo Sykes-Picot de 1916. Depois, à recém formada República da Turquia em 1923, por acção de Mustafa Kemal Atatürk, que reclamava esse território ex-otomano também para si. A situação acabou por ser submetida à arbitragem da Sociedade das Nações (SdN), a organização precursora da actual ONU. A comissão que se ocupou do assunto decidiu, em 1926, a favor dos britânicos.

3. Foi assim que uma  “linha na areia” traçada inicialmente num mapa, por dois diplomatas e administradores coloniais, Sykes e Picot, se acabou por transformar em fronteira política de vários povos – quer do actual Iraque, quer de outros Estados do Médio Oriente (ver o  recente livro de James Barr “A Line in the Sand: Britain, France and the Struggle That Shaped the Middle East“; ver também o já clássico livro de David Fromkin “A Peace to End All Peace: The Fall of the Ottoman Empire and the Creation of the Modern Middle East“). Aparentemente, os jihadistas do Estado Islâmico do Iraque e do Levante ou Estado Islâmico do Iraque e da Síria (ISIS, na sigla em inglês), estão empenhados em “apagar” essa fronteira do mapa. O objectivo é tentar reconstruir um mitificado califado islâmico que devolva a “idade de ouro” aos muçulmanos. A ideia parece ser também desencadear a engrenagem duma luta, teoricamente religiosa, na realidade bem política e de poder, ao longo da linha de fractura entre sunitas versus xiitas. Independentemente do rumo dos acontecimentos, uma coisa é certa: vão deixar mais linhas traçadas a sangue na areia e prolongar (o já grande) sofrimento da população iraquiana.

Investigador

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