Inundado de refugiados, Ocidente olha de forma diferente para Assad

O debate sobre a presença militar da Rússia na Síria esconde a grande mudança operada neste Verão. Assad, mais do que o problema, é cada vez mais parte da solução. Até para os refugiados que ele próprio criou.

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O regime de Bashar al-Assad continua a ser que mais mata civis na Síria. Muito mais do que o Estado Islâmico. Joseph Eid/AFP

Bashar al-Assad está a perder a guerra na Síria. Perde a Sul para os rebeldes moderados, a Norte e a Leste para coligações de milícias que, na sua maioria, são compostas por grupos extremistas islâmicos. As forças do regime escasseiam de meios e soldados, por morte ou deserção, e, só nesta última semana, tiveram de abandonar a última base militar do regime na província de Idlib, assim como a base aérea de Abu al-Duhur, que até agora resistira a dois anos cercada.

Em Deir Ezzor, a Leste, o autoproclamado Estado Islâmico posicionou-se nos últimos dias a menos de um quilómetro de uma das últimas bases aéreas de Assad a Norte de Damasco. Perdera antes Palmira, para choque do Ocidente, e Jazal, o último grande campo petrolífero do Governo. Ambos para jihadistas.

A gradual derrota de Assad está a tornar-se de tal forma evidente na Síria que até as populações alauitas, que sempre lhe foram fiéis, protestaram em Agosto contra o recente desempenho do exército. Semanas antes, o Presidente sírio admitira ao país que não tinha homens suficientes para ganhar a guerra e que tinha agora de se concentrar em territórios-chave perto da capital. Tudo isto seriam más notícias para o ditador sírio, não fosse pelo facto de a sua imagem ter gradualmente mudado nos últimos meses. Assad, o homem que mais civis matou e continua a matar na guerra da Síria, deixou de ser o principal problema do Ocidente.

Aos olhos ocidentais, o Estado Islâmico é o principal responsável pela vaga de milhares de refugiados que todos os dias arriscam a vida a tentar atravessar o Mediterrâneo e fugir da guerra na Síria. O Presidente francês disse-o no início da última semana, estava ainda fresca a imagem do corpo de Alan nas costas da Turquia. François Hollande anunciava então que ia começar voos de reconhecimento na Síria para bombardear os jihadistas. A Austrália está a ponderar fazer o mesmo. O Reino Unido atacou pela primeira vez o grupo também na última semana, e indicou que poderá fazê-lo novamente. Tudo isto no espaço dos dias em que a Europa discute, dividida, o que fazer com a maior vaga de refugiados no continente desde a II Guerra Mundial.

“É uma resposta imensamente insatisfatória, mas a verdade é que cada vez que fazemos algo, acabamos por fazer algo pior. As imagens dos refugiados estão a mudar as políticas, mas não estão a alterar a realidade militar”, diz ao Financial Times Steven Cook, investigador no think-tank Council on Foreign Relations. E a realidade na Síria é que é Bashar al-Assad quem mais mata. Muito mais do que os jihadistas do Estado Islâmico ou até do que o satélite da Al-Qaeda no país, a Frente al-Nusra. O regime sírio matou 7894 pessoas entre Janeiro e Julho, segundo dados da Rede Síria para os Direitos Humanos, que monitoriza o conflito a partir do Reino Unido. O Estado Islâmico matou 1131. Poucos dias depois de esta contagem terminar, em meados de Agosto, os aviões de Assad mataram mais de 104 civis nos subúrbios de Damasco num só dia.

“A crise de refugiados é frequentemente olhada pelo prisma do Estado Islâmico”, diz Emile Hokayem, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, outro think-tank. “Mas a maior parte dos refugiados partem para a Europa porque estão a fugir dos ataques aéreos de Assad e das suas bombas-barril.”

Primavera de Assad
A resposta militar e diplomática do Ocidente, contudo, centra-se cada vez mais no Estado Islâmico e cada vez menos em Assad. O Parlamento britânico discutiu na última semana uma proposta para que Assad fizesse parte de um Governo de transição na Síria com a duração máxima de seis meses. O ministro espanhol dos Negócios Estrangeiros declarava também, em Teerão, que “chegou a hora de negociar com a Bashar al-Assad”.

A reforma da imagem do ditador é anterior à explosão da crise dos refugiados na Europa. Já tinham morrido 220 mil pessoas na Síria quando, em Fevereiro deste ano, Assad se dirigiu ao mundo ocidental numa entrevista à BBC. Negou os números da guerra civil – que chegaram aos 250 mil mortos e quatro milhões de refugiados –, os assassínios e torturas nos centros de detenção. Em editorial, o Guardian sublinhava que, mais do que um “exercício de negação”, a entrevista foi a prova da “vantagem política” que ganhara com a entrada em cena do Estado Islâmico. A coligação internacional, confrontada com as matanças chocantes dos jihadistas, começava já a ignorar Assad.  As negociações para a transição política na Síria iam ficando de lado. “Essa conversa já passou, tal como as exigências do mundo ocidental para que Assad abandone o poder", escrevia o jornal.

Pouca alternativa parece haver para além de Assad. Os grupos jihadistas ganham cada vez mais apoiantes à medida que conquistam novos territórios. Os opositores de Assad preferem-nos às milícias moderadas apoiadas pelo Ocidente, não só porque o principal inimigo continua a ser o Presidente sírio mas também porque não estão tão bem preparadas ou armadas como os extremistas – já só resistem, aliás, em pequenos territórios no Sul.

Os ataques da coligação, que deveriam “degradar, derrotar e por fim destruir” o Estado Islâmico, nas palavras de Barack Obama, eliminaram apenas oito mil dos cerca de 50 mil jihadistas que se estima formarem o grupo. A estratégia de treinar um batalhão de moderados no país é outro fiasco norte-americano. Os Estados Unidos gastaram 500 milhões de dólares a treinar 60 combatentes, alguns dos quais já morreram e foram capturados. Quatro milhões de dólares por cabeça. Há mais: segundo Hassan Hassan, especialista e autor sobre o Estado Islâmico, Washington gasta perto de 10 milhões de dólares por dia a bombardear os jihadistas.

A mão de Moscovo
É por entre a desorientação ocidental que surgem as notícias de uma maior presença russa na Síria. Moscovo começou por dizer que o material que os seus aviões transportavam era apoio humanitário, mas admitiu depois que se tratava de remessas de veículos blindados e equipas de consultores. O Kremlin, aliás, nunca escondeu o seu apoio militar a Assad e, neste domingo, prometeu mais uma vez que não deixará de o fazer. “Enviámos remessas militares, ainda o estamos a fazer e vamos continuar”, disse o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. Nada disse quanto aos alegados planos russos para alojar cerca de mil soldados seus no Porto de Tartus, bastião alauita de Assad, ameaçado por grupos rebeldes. As alegações de que há já militares russos em combate na Síria parecem ser, por enquanto, pouco convincentes.  

Mas o alarme no Ocidente é real. Principalmente porque a entrada em cena da Rússia seria uma reviravolta inesperada para quem julgava que o acordo nuclear iraniano poderia amolecer a insistência de Teerão em preservar Assad no poder. A Rússia diz que o seu objectivo principal é derrotar “os terroristas” – designação que Moscovo usa para identificar todos os grupos armados, até os mais moderados – mas, como escreve o New York Times, é possível que a sua intenção seja posicionar-se no terreno para melhor influenciar um desfecho político para a guerra. Por enquanto, como escreve Patrick Cockburn no Independent, Moscovo está a conseguir demonstrar que o Ocidente não tem um plano concertado para a Síria.

“Há algo de hipócrita acerca das críticas norte-americanas a um possível aumento do papel militar da Rússia na Síria – embora os russos neguem que isto esteja a acontecer –, porque ninguém ficaria mais horrorizado do que Washington se o exército sírio colapsasse e o Estado Islâmico e a Al-Qaeda se tornassem a força dominante na Síria”. 

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